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08/02/2024

Qual o papel da câmera no uniforme de policiais? Veja o que dizem especialistas

Pesquisas apontam queda nas mortes em intervenções policiais quando há uso do equipamento no uniforme dos agentes. Há pontos importantes em discussão, como a forma em que as gravações são armazenadas, a supervisão dos agentes e de suas condutas e as regras de acesso às imagens

Câmeras corporais no uniforme de PMs. Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil Câmeras corporais no uniforme de PMs. Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

O uso de câmeras corporais para policiais captarem imagens em abordagens vem sendo defendido por especialistas em segurança pública e direitos humanos. Uma das principais vantagens é a redução da letalidade policial nas abordagens por conta do uso do equipamento. Outro ponto importante é a maior segurança que o equipamento oferece para os próprios agentes. 

Uma pesquisa, divulgada em maio de 2023 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstra que em São Paulo a redução chegou a 62,7% nas mortes por intervenções de policiais militares em serviço – a maioria (76,2%) em batalhões que faziam parte do programa de câmera corporal.

Apesar dos números positivos, o governo de São Paulo cortou ao menos R$ 37 milhões no programa ao longo do ano passado. Em 2023, o governador Tarcísio de Freitas editou quatro decretos que reduziam os investimentos nas câmeras e repassavam os gastos para outras áreas. O último é de dezembro. Em janeiro, uma nota pública assinada por seis organizações que atuam no tema da segurança pública, entre elas a Conectas, expressa preocupação sobre a interrupção dos investimentos.

No Rio de Janeiro, o uso de câmeras para policiais foi determinado pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Desde 8 de janeiro, policiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) devemestão usarndo as câmeras corporais quando acionados em ocorrências. A medida é resultado da decisão do ministro Edson Fachin ao analisar a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, conhecida como ADFP das Favelas, no STF.

Saiba mais: 

Na esfera federal, o governo tenta institucionalizar o uso de câmeras para policiais de todo o país. O Ministério da Justiça abriu em dezembro consulta pública sobre o tema e já anunciou que pretende publicar normativa  para torná-las parte do aparato de proteção individual. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária publicou recomendação sobre o uso.

Enquanto o projeto não é apresentando, o tema vem repercutindo pelo país não basta  instalar as câmeras presas às fardas policiais para prevenir e garantir a responsabilização por letalidade e outras violências institucionais. É preciso uma gestão eficiente das imagens, bem como a coordenação da atuação do Sistema de Justiça. Para falar sobre o tema, a Conectas ouviu três especialistas:

  • Gabriel Sampaio, diretor de litigância e incidência da Conectas
  • Monique Cruz, coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global
  • Daniel Edler, pesquisador de pós-doutorado do NEV/USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo)

Confira abaixo:

Qual o papel das câmeras corporais na segurança pública hoje?

Gabriel Sampaio: O uso das câmeras corporais tem importância fundamental para a qualificação de investigação criminal, controle externo da atividade policial e tutela da vida e integridade física de agentes públicos e cidadãos direta ou indiretamente envolvidos em atuação ou abordagem policial. Seu uso oferece às polícias e à sociedade instrumento de prevenção e controle contra o abuso da atividade policial, assim como elementos probatórios da prática de ilícitos, inclusive aqueles praticados contra ou pelos próprios agentes públicos.

Monique Cruz: As câmeras corporais têm, entre outros, um papel de colaborar para que o Brasil crie uma cultura democrática de controle das forças policiais e, consequentemente, para o reconhecimento de que não se faz segurança pública com violência, tortura e morte. A utilização das câmeras corporais, além de sua função efetiva para a criação de evidências (para a proteção das pessoas em geral, incluindo os policiais em seu papel institucional), tem o poder de criar o entendimento de que uma vida cidadã também deve considerar atenção à atuação das polícias. Infelizmente, são reproduzidas ideias na sociedade brasileira extremamente prejudiciais à democracia: de um lado, uma parte da população que se sente segura por uma política estatal que violenta determinados grupos – sobretudo negros e empobrecidos –, e por outro lado, esses outros não têm condição de confiar em uma instituição que todos os dias promove a violência e morte sob justificativas que não se sustentam na realidade vivida.

Daniel Edler: As câmeras corporais dividem opiniões. Há quem as veja como uma solução para o duplo problema da violência e da legitimidade policial – nesta perspectiva, bastaria acoplar as câmeras aos uniformes para que estes passassem a reduzir o uso da força e gerar maior confiança na população. Por outro lado, há quem veja as câmeras como “cabrestos” que desestimulariam a ação policial, aumentando a criminalidade nas grandes cidades brasileiras. Mas as pesquisas apresentam um cenário com mais nuances. Estudos de avaliação de impacto apontam que, sob certas condições, as câmeras podem sim reduzir o uso da força, por duas razões: os cidadãos abordados tenderiam a respeitar mais os agentes, evitando a escalada de tensões; e as câmeras levariam o policial a seguir os protocolos operacionais, reduzindo casos de abuso. 

Não há evidências no Brasil para indicar que as câmeras tornaram o policial menos ativo contra o crime. O que as pesquisas mostram é que policiais passam a fazer mais registros para ocorrências que antes eram negligenciadas, como violência doméstica. 

No entanto, as câmeras não atingem esses efeitos por sua mera presença no uniforme. A maioria dos estudos indica que protocolos inadequados de uso e problemas com a cadeia de custódia dos dados podem tornar as câmeras ineficazes. Por isso, é importante que as corporações atentem para esses detalhes, façam testes operacionais e, fundamentalmente, escutem as demandas legítimas dos policiais (a privacidade em certos espaços, por exemplo, é um problema que deve ser observado). Sem o convencimento dos agentes, continuaremos vendo as mil e uma maneiras pelas quais o monitoramento pode ser driblado. 

Por fim, é necessário que o equipamento faça parte de um processo institucional de reforma e profissionalização das polícias que tenha como objetivo central torná-las mais eficazes e menos letais. Se o governo de ocasião nem reconhece o problema da letalidade policial, ou até enaltece a violência como principal estratégia para a redução do crime, não são as câmeras que vão resolver.

Quais diretrizes os governos devem adotar na implementação dessa tecnologia em suas polícias?

Gabriel Sampaio: Há importante debate sobre as diretrizes a serem adotadas pelos governos. Inicialmente, é importante que o uso das câmeras seja prioridade de todos os governos, até que sua implementação se universalize. Os indicadores demonstram a alta capacidade de redução da letalidade, qualificação da produção de elementos probatórios de atos ilícitos, e maior proteção aos policiais contra crimes praticados no exercício da função. Em razão disso, em linhas gerais, a garantia de universalização, associada à efetivação de instrumentos de fiscalização, por meio do acesso a órgãos correicionais, de controle social e externo, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. Além das garantias de: i) auditabilidade do sistema e da responsabilização dos agentes por seu uso; ii) integridade das imagens e aperfeiçoamento de protocolos e tecnologias para prevenção de ilícitos, iii) desenvolvimento de ferramentas que contribuam para a identificação e guarda de imagens relacionadas a ilícitos e atos violentos, iv) respeito aos direitos fundamentais na guarda e uso das imagens pessoais.

Monique Cruz: Algumas diretrizes têm sido amplamente discutidas e apontadas pela sociedade civil e setores do Estado como indispensáveis ao sucesso da implementação e utilização das câmeras corporais. Entre elas, estão as questões técnicas relacionadas às filmagens em específico, como maior controle e acesso afetivo pelos órgãos fiscalizadores ao material produzido pelas câmeras, além de outras como o acionamento automático, o acesso pelas vítimas, familiares, réus, defensorias públicas e ainda a tempo hábil de guarda e manutenção do material. Além disso, é fundamental que sejam implementadas formas de garantir a participação e o controle social sobre como essa política será implementada e monitorada e quais são os mecanismos de transparência, destinação de recursos e accountability. Mas essas questões, infelizmente, não são observadas pelas forças policiais e secretarias em nenhum estado brasileiro, mesmo em quesitos mais cotidianos.

Daniel Edler: O Ministério da Justiça e Segurança Pública criou um grupo de trabalho para ouvir demandas dos policiais, preocupações da sociedade civil, e levantar evidências sobre os efeitos das câmeras em outros países. Isso deve resultar em uma normativa nacional para as câmeras corporais, um processo transparente e plural. Além disso, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária formulou uma recomendação sobre o uso da ferramenta por agentes de segurança pública e privada. Trata-se de um documento bastante abrangente e que deve servir de baliza para quem quiser implementar um sistema de câmeras corporais. 

Os gestores públicos que quiserem implementar as câmeras para policiais devem observar três pontos: forma de gravação, o trabalho de supervisão interna e externa dos policiais e a política de acesso às imagens.

  • Pesquisas indicam que quando os sistemas não gravam automaticamente todo o turno operacional, os efeitos sobre redução do uso da força são muito menos evidentes. Isso não quer dizer que não possam ser feitas exceções para atender as demandas de policiais por privacidade. O protocolo de São Paulo, no qual a câmera grava imagens ininterruptamente e o policial aciona um botão no momento da abordagem para melhorar a qualidade do vídeo e captar o áudio, tem se mostrado o mais adequado.
  • É fundamental que oficiais façam a supervisão de seus comandados através das imagens. As pesquisas indicam que esse trabalho serve para dissuadir ações ilegais de policiais, mas também para aprimorar os treinamentos e protocolos de operação. Mas a supervisão gera também alguns problemas, como maior carga de trabalho e receio de práticas abusivas. Desse modo, é importante constituir mecanismos externos de avaliação, o que pode ser resolvido com o fortalecimento de instituições, como a Ouvidoria ou a Corregedoria.
  • O acesso às imagens é também uma questão delicada. Pesquisas indicam que instituições policiais no Brasil e no mundo tendem a dificultar o acesso a vídeos que comprometam seus agentes. E, quando os bancos de dados são geridos pelas próprias polícias, é comum que a seleção de imagens de determinado fato contribua para narrativas que favoreçam a polícia. Por isso, é importante que corregedores, defensores públicos, procuradores e juízes tenham acesso ao banco de dados, que não pode ser irrestrito, já que as câmeras capturam imagens bastante sensíveis, como vítimas em situação de extrema vulnerabilidade, pessoas feridas e até espaços domésticos. A política de gestão das imagens deve equilibrar essas diferentes demandas e prezar ainda pela segurança do banco de dados.
  • Em resumo, as câmeras corporais são tão boas quanto seus protocolos de operação. Se forem bem implementadas, podem ajudar a construir polícias menos violentas e mais profissionais. Mas sem controle externo e barreiras contra uso abusivo (como processamento de imagens para reconhecimento facial), elas podem se tornar apenas mais uma ferramenta punitiva ou de propaganda institucional.

Juristas defendem uso de câmeras 

Um parecer da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ que analisa ações jurídicas para conter violações de direitos no âmbito da Operação Escudo, deflagrada em agosto de 2023 no litoral paulista, salienta que “as câmeras corporais promovem a segurança pública, em sua acepção constitucionalizada de serviço público prestado de forma igualitária e eficiente, pautado na defesa de direitos fundamentais”. Leia o parecer completo neste link

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