Brumadinho: recomendações ao Poder Público e à Vale
Após visita a campo, Conectas cobra da empresa e das autoridades públicas medidas para conter novas violações e garantir a reparação integral
Três dias após o rompimento da barragem de Córrego de Feijão, em Brumadinho (MG), uma comitiva da Conectas esteve no local para dar apoio, prestar solidariedade aos familiares das vítimas e acompanhar de perto as ações emergenciais e de atendimento realizado pela Vale e autoridades públicas às pessoas atingidas. Confira abaixo o vídeo com o relato da missão e as recomendações aos órgãos governamentais, ao sistema de justiça e à Vale:
Relato e Recomendações
Missão a Brumadinho, MG
Entre os dias 28 a 31 de janeiro de 2019 uma delegação da Conectas verificou in loco as ações emergenciais após o rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, de propriedade da Vale, no município de Brumadinho, Minas Gerais.
A equipe esteve nas cidades de Belo Horizonte e Brumadinho e visitou o centro onde se instalou o comando das operações de resgate dos mortos (Faculdade ASA de Brumadinho); o posto central de atendimento às vítimas, na Estação de Conhecimento da Vale; e as comunidades de Córrego de Feijão e Parque da Cachoeira. A Conectas se reuniu, ainda, com a Força Tarefa conjunta dos Ministério Públicos e Defensorias Públicas e participou de audiência pública coordenada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), na comunidade de Córrego de Feijão. A equipe colheu relatos diretos de representantes das comunidades nos postos de atendimento aos atingidos, bem como vistoriou diretamente áreas destruídas pela lama de rejeitos próximas ao rio Paraopeba.
O objetivo primordial da missão foi o de identificar possíveis violações de direitos na fase inicial após o desastre. Com base no acompanhamento realizado pela Conectas das violações causadas pelo desastre do Rio Doce, sabe-se que as medidas emergenciais adotadas pelas autoridades públicas e pela empresa responsável nos primeiros momentos são cruciais para minimizar a chance de que os danos ambientais e as violações a direitos se agravem ou tornem-se irreversíveis, ainda que muitos efeitos negativos venham a ser permanentes. Essa fase também é crítica para o levantamento de provas para a instrução dos procedimentos que visam à responsabilização dos causadores nas esferas cível, penal e administrativa.
Com base nas informações colhidas e na análise dos documentos acessados, a Conectas constatou uma série de demandas das comunidades, que são elencadas abaixo em referência aos direitos humanos que devem ser assegurados aos atingidos:
Direito à informação sobre as buscas e identificação: Pessoas atingidas reportaram a dificuldade sistemática para obter informações sobre as buscas por desaparecidos e sobre a identificação dos corpos já encontrados. Em um primeiro momento, listas com o número e a identidade de mortos e desaparecidos eram fornecidas pela Vale à imprensa, e não diretamente aos familiares. Além disso, segundo relatos, as listas eram atualizadas apenas uma vez ao dia, deixando familiares de mortos e desaparecidos em um estado de grande angústia e apreensão pela demora em obter informações. Por fim, muitas pessoas atingidas reportaram que a Vale estaria adotando práticas discriminatórias no tratamento dado a familiares de mortos e desaparecidos que não eram seus trabalhadores. De acordo com os relatos, as informações prestadas sobre o paradeiro e a identidade de trabalhadores da Vale eram prestadas com mais rapidez e acurácia do que aquelas que eram fornecidas aos demais.Recomendação: a Vale e o poder público devem agir com eficiência nas buscas e na identificação de mortos e desaparecidos, fornecendo informações acessíveis e de forma isonômica a todos os familiares e atualizando as listas com maior periodicidade.
Direito à água direito ao acesso à informação sobre a toxicidade do rejeito: Indivíduos e famílias atingidos não têm certeza se devem retomar suas atividades diárias, pois não há informações sobre a toxicidade dos locais onde eles moravam e trabalhavam. O estado de Minas Gerais emitiu um alerta de contaminação do rio Paraopeba. Recomendou que as pessoas se abstenham de usar a água do rio para qualquer finalidade, inclusive para a hidratação e irrigação do gado. A experiência do rio Doce demonstrou que a terra e a água permanecem tóxicas mesmo depois que a lama é removida. Portanto, a comunidade está legitimamente preocupada com os locais seguros para cultivar, pescar, coletar água, tomar banho e geralmente habita.Recomendação: Até que se produzam laudos confiáveis comprovando a potabilidade da água fornecida, a Vale deve fornecer água própria para consumo humano, animal e para uso doméstico em quantidade suficiente para suprir a sua demanda de todas as comunidades atingidas. Também é necessária a produção de estudos conclusivos e independentes a respeito da toxicidade do rejeito e dos seus possíveis efeitos sobre a saúde humana.
Direito à saúde: O contato com o rejeito potencialmente tóxico e o consumo de água imprópria tem um impacto direto sobre a saúde física dos atingidos. Além disso, as pessoas atingidas estão convivendo com a incerteza sobre a toxicidade da lama, sobre a qualidade da água e sobre a identidade dos corpos resgatados, bem como o risco de rompimento da barragem IV da mina do Córrego do Feijão, com impacto direto sobre a sua saúde mental.Recomendação: A Vale deve fornecer atendimento médico especializado às comunidades atingidas com vistas à identificação e ao tratamento dos efeitos do contato com o rejeito sobre a saúde física dos atingidos. Também deve ser disponibilizado apoio psicológico e social para às pessoas atingidas. Esse serviço, ainda que custeado pela Vale, deve ser fornecido com garantias de independência da supervisão da empresa e da devida proteção à privacidade do indivíduo, garantindo que os usuários se sintam seguros e não temam conflitos de interesse. Por fim, a atuação da Vale não isenta o poder público nos níveis federal, estadual e municipal do desenvolvimento de políticas públicas específicas de proteção e promoção da saúde física e mental das pessoas atingidas.
Direito à alimentação: A lama tóxica impediu o acesso a suprimentos alimentares, bem como a cozinhas e outras instalações de preparação de refeições. Muitas pessoas também perderam seus meios de subsistência, já que a lama contaminou a terra e o rio. Imediatamente após o desastre, a Vale forneceu almoços e jantares para a população. No entanto, a nutrição adequada também requer pelo menos a provisão de café da manhã. A população também solicitou a provisão de uma cozinha comunitária, para que os indivíduos afetados não precisem depender indefinidamente de refeições embaladas.Recomendação: A Vale deve fornecer alimentação balanceada e em quantidade suficiente para atender a todas as necessidades das pessoas atingidas. Tal qual solicitado pelos atingidos, a empresa também deve estabelecer ambientes comunitários de preparo e consumo das refeições. A médio prazo, é necessário que a empresa restabeleça os meios de subsistência das pessoas atingidas, de modo a possibilitar o desenvolvimento dos seus modos de vida habituais.
Direito ao trabalho e à renda digna: Muitas pessoas atingidas eram pequenos produtores rurais que tiveram suas plantações destruídas com contaminadas pela lama. Outros eram funcionários de estabelecimentos comerciais que também foram destruídos e, portanto, ficaram sem renda após o rompimento da barragem. A Vale atualmente está prestando auxílio financeiro apenas àqueles que estão desabrigados, seja em razão da destruição dos imóveis em que moravam, seja porque esses imóveis se encontram em locais de risco. Portanto, existem muitas pessoas atingidas que estão impossibilitadas de arcar com seus custos diários em função da perda da fonte de renda.Recomendação: Todos aqueles indivíduos cujos meios de subsistência foram impactados negativamente pelo desastre devem ser compensados. Isso inclui não apenas os agricultores e funcionários diretos da Vale, mas também os indivíduos indiretamente atingidos pelas operações de minas interrompidas e pela contaminação da área. Além da compensação, deve haver assistência de emergência para aqueles que foram mais severamente atingidos.
Restabelecimento de serviços de eletricidade, água e saneamento: A lama destruiu a infraestrutura que forneceu acesso a serviços públicos básicos, como eletricidade, água e saneamento. Há uma necessidade urgente de restaurar equipamentos danificados, incluindo dentro de casas e fazendas.Recomendação: A Vale e o poder público devem atuar com máxima urgência no restabelecimento completo de todos os serviços públicos essenciais, garantindo o pleno acesso das comunidades atingidas à eletricidade, água e saneamento.
Segurança e direito à propriedade: O deslocamento forçado de pessoas de suas casas deixou a propriedade desacompanhada, e há relatos de uma onda de furtos. Indivíduos desprotegidos também são vulneráveis a roubos e outros tipos de violência. A comunidade solicita que o governo coloque uma delegacia de polícia na área e adote medidas gerais de segurança pública.Recomendação: O poder público estadual deve garantir o policiamento das regiões atingidas e desenvolver políticas de segurança pública direcionadas à prevenção de roubos e furtos.
Direito à consulta significativa e à participação: não há pessoas atingidas nos órgãos que estão monitorando e desenvolvendo as medidas emergenciais, tais como o Conselho Ministerial de Supervisão de Respostas a Desastre, criado pelo governo federal por meio do Decreto n. 9.691/2019 com a finalidade de fiscalizar as atividades desenvolvidas em resposta ao desastre. Até o momento, decisões relevantes relativas à defesa dos direitos das pessoas atingidas não estão sendo tomadas a partir de um processo efetivo de participação informada.Recomendação: A Vale e o poder público devem garantir a participação das comunidades atingidas em todos os processos de tomada de decisão em relação a medidas de emergência, compensação e restauração. A participação pode ser realizada por meio de representantes, desde que sejam legitimamente escolhidos pela comunidade e prestem contas aos indivíduos afetados. Todas as decisões que tenham influência sobre a esfera de direitos das pessoas atingidas devem contar com a sua participação ampla e informada. A empresa e o poder público também devem se engajar em amplo diálogo com organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
Direito à moradia adequada: 135 pessoas foram desabrigadas, seja em razão da destruição dos imóveis em que moravam, seja porque esses imóveis se encontram em locais de risco. Atualmente, as pessoas desabrigadas são direcionadas a hoteis e casas alugadas pela Vale, as quais são compartilhadas com outras pessoas atingidas. Tratam-se, portanto, de abrigos temporários e que não são da livre escolha das pessoas atingidas.Recomendação: A Vale deve fornecer às pessoas atingidas opções de abrigo de emergência e moradia de longo prazo que obedeçam os padrões internacionais para o direito à moradia adequada. As pessoas atingidas devem estar no centro da tomada de decisões sobre moradia, tendo o poder de decidir onde irão viver.
Direito de ir e vir: Os rejeitos bloquearam as estradas que ligavam a comunidade do Córrego do Feijão ao centro de Brumadinho. O tempo normal de viagem levaria apenas 20 minutos antes do colapso. Agora, as comunidades precisam viajar quase duas horas de carro para chegar ao centro da cidade para trabalhar ou para acessar serviços básicos, como supermercados e hospitais, bem como o principal centro de assistência. Os membros da comunidade solicitaram que a Vale autorize o acesso a uma estrada particular que atravessa as minas e que reduziria a viagem para apenas 15 minutos. A Vale se recusa a fazê-lo com base no fato de que o acesso desimpedido não é seguro. Isso não é desculpa para bloquear o acesso completamente. A Vale poderia oferecer carros para escoltar os motoristas pela estrada e também fornecer ônibus.Recomendação: A Vale e o poder público devem garantir o direito à livre circulação das pessoas atingidas. Como medida emergencial, deve-se permitir a passagem das pessoas atingidas pela estrada que passa por dentro da propriedade da Vale. Posteriormente, deve-se reconstruir as estradas de acesso destruídas pela passagem dos rejeitos. As comunidades devem ter acesso a informações sobre o prazo para a retirada dos rejeitos e devem estar envolvidos na tomada de decisões sobre prioridades, cronograma e formas de remoção. A empresa deve adotar todas as precauções necessárias para que a movimentação de máquinas pesadas não abale as estruturas dos imóveis localizados nas regiões atingidas e deve depositar o rejeito retirado em local adequado e isolado.