A advogada Osai Ojigho é defensora de direitos humanos e vice-diretora executiva da Alliances for Africa. Ela viu nascer uma das mais extensivas campanhas feitas pela internet, a #BringBackOurGirls, criada para pedir a libertação de um grupo de 276 meninas sequestradas numa escola secundária na vila de Chibok, na Nigéria, no dia 14 de abril, por membros do grupo armado Boko Haram.
Nesta entrevista ela conta como a campanha começou e qual é a real situação das mulheres, jovens e crianças que sofrem com casamentos infantis por obrigação, mutilação genital feminina e outras violações de direitos humanos que vão muito além do sequestro das estudantes.
Leia aqui a notícia completa sobre o sequestro das meninas de Chibok.
1) Você poderia falar um pouco sobre as leis existentes para proteger os direitos das mulheres e das meninas do e as normas legais que restringem esses direitos? Quais são as diferenças entre as boas leis e as práticas culturais existentes?
A Constituição da República Federal da Nigéria, em particular sua Seção 42 (1) (a), prevê que ninguém deve ser discriminado em razão de sexo ou qualquer outro motivo. Há a Lei 2003 referente a Aplicação e Administração da Lei Proibindo o Tráfico de Pessoas. Além disso, a Nigéria ratificou uma série de tratados, incluindo a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a CEDAW, o Protocolo à Carta Africana sobre os Direitos da Mulher na África , a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Os tratados relativos aos direitos da criança foram domesticados na Nigéria por meio da promulgação da Lei dos Direitos da Criança de 2003. A Nigéria também domesticou a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, cujo artigo 18 (3) afirma que “o Estado tem o dever de zelar pela eliminação de toda a discriminação contra a mulher e de assegurar a proteção dos direitos da mulher e da criança tais como estipulados nas declarações e convenções internacionais”. Entretanto, uma vez que a Nigéria é um país federativo, cada estado (existem 36) tem de aprovar a lei em em sua Assembleia de Câmara Estadual. Cerca de 23 Estados fizeram isso. A maioria dos Estados que ainda não domesticaram a Lei dos Direitos da Criança são aqueles onde a Sharia está em operação (no norte do país).
Há também leis em alguns Estados que abordam a questão da violência contra a mulher, violência doméstica, retirada das meninas da escola, a mutilação genital feminina, etc, mas isso varia de Estado para Estado e não há uma legislação nacional aplicável que proteger os direitos das mulheres e meninas. O Código Penal, aplicável no sul e no norte da Nigéria, respectivamente, proíbe e pune estupro e atentado violento ao pudor. No entanto, Seção 55 (1) (d) do Código Penal, aplicável no norte da Nigéria, tolera a agressão a esposas como castigo enquanto nenhum dano grave seja cometido e desde que o seu direito natural e os costumes permitam essa prática. Essencialmente, certas práticas culturais e religiosas toleram o casamento infantil, mutilação genital feminina e submissão das mulheres, mas isso também varia de Estado para Estado.
Na prática, as leis, visando proteger e promover os direitos das mulheres e meninas, não têm sido plenamente aplicadas por causa da precária comunicação de violações contra mulheres e meninas.
2) Você menciona que os Estados do norte da Nigéria aplicam a Sharia, incluindo leis que afetam mulheres e meninas, em uma ampla gama de áreas. Poderia, por favor, elaborar mais?
A Sharia abrange certos aspectos do direito pessoal que regem as relações de família, casamento, divórcio, e a custódia das criancas. Os conflitos comuns que temos visto entre a aplicação da Sharia e do direito internacional dos direitos humanos são: idade mínima de casamento, a poligamia e os direitos das mulheres no âmbito de casamento. Por exemplo, enquanto a Lei dos Direitos da Criança estabelece que a idade mínima de casamento para ambos os sexos é de 18 anos, a lei islâmica permite o casamento de uma menina que tenha atingido a puberdade (geralmente entre 9-16 anos de idade).
3) O seqüestro ocorre num momento em que o clima político e as reformas jurídicas em relação à sexualidade e, em particular, à homossexualidade, tem tomado formas bastante draconianas. Você pode analizar essa conexão ao longo da linha de pensamento desenvolvida no memorando publicado pelo capitulo Sul-Africano da ANNID (sigla para a organização All Nigerians Nationals in the Diaspora), que tem o seguinte teor: “O governo deve continuar a esforçar-se para criar uma melhor economia e uma vida melhor para todos os nigerianos, independentemente de religião, idade, sexo, orientação sexual ou de fundo. O governo também deve garantir que a segurança de vidas e propriedades de todos os nigerianos sejam primordiais.”
O Governo Federal passou a Lei de Proibição de Uniões Entre Pessoas do Mesmo Sexo em 2013, mas, na minha opinião, isso não está ligado ao sequestro. Embora não possamos ignorar a intolerância à homossexualidade, a promulgação dessa lei foi principalmente para marcar o apoio político das comunidades em geral conservadores e religiosos que existem na Nigéria. O sequestro das meninas na escola em Chibok, Estado de Borno, pelo grupo extremista Boko Haram, no entanto, refere-se às vulnerabilidades das mulheres e de meninas nos conflitos armados. A movimentação das meninas através das fronteiras destaca o risco de tráfico e uso de mulheres e meninas como espólios de guerra. A forma como o Boko Haram se relaciona com a educação afeta meninos e meninas. Estes incidentes destacam a necessidade de lidar com o terrorismo e fornecer proteção para os civis em conflitos armados, quer sejam internacionais ou não, e, mais importante, para abordar a importância e os direitos de todas as crianças, especialmente as meninas, à educação.
4) Como tem sido a resposta e a reação da sociedade nigeriana em relação ao episódio? E a resposta do Estado?
Os nigerianos ficaram chocados com a falta de ação do Estado na investigação do crime. Foi muito chocante que o presidente tenha esperado mais de 2 semanas para tratar do fato. Foi relatado que, quando as autoridades foram informadas sobre o rapto/sequestro, as famílias das meninas desaparecidas (tomadas em 14 de abril) foram informadas de que os agentes de segurança estavam trabalhando para resgatá-las. No entanto, duas semanas depois desses relatos, nada tinha sido feito. Isso levou grupos de mulheres, ativistas de direitos humanos e ONGs a organizar uma série de protestos demandando ação. A campanha #BringBackOurGirls começou como uma ação de advocacy pedindo ao governo nigeriano que fizesse justiça. O Estado foi inicialmente lento em responder a qualquer inquérito, mas quando a imprensa internacional e muitas pessoas proeminentes, incluindo estrelas da música, se interessaram pela campanha, o presidente criou uma comissão e já aceitou a ajuda dos EUA, Reino Unido e França.
5) Conte-nos sobre a Campanha e as iniciativas que Alliances for Africa tem desenvolvido para aumentar a conscientização sobre a situação e defender o retorno seguro das meninas. Há iniciativas de outros grupos da sociedade civil na Nigéria?
A campanha #BringBackOurGirls foi iniciada por um tweet (usando a hashtag), enviado por uma ex-ministra nigeriana, a Sra. Oby Ezekwesili (@obyezeks), em um evento. Um grupo de ONGs, sob os auspícios da Mulheres para a Justiça e a Paz, organizou protestos em diferentes cidades e vilas na Nigéria chamando para a ação. Outra hashtag que está sendo usada é: #ChibokGirls.
A Aliança para a África participou nos protestos no Estado de Lagos, na Nigéria. Como o secretariado do Fórum Feminista nigeriano, que elaborou e divulgou um comunicado de imprensa, e com parceiros, temos pedido ao Comitê Africano de Peritos sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança (ACERWC) para resolver a questão do direito das crianças à educação em situações de conflito e, especificamente, para solicitar que o governo da Nigéria facilite a investigação e o julgamento dos responsáveis e tome medidas para prestação de serviços psico-social, médica e jurídica para as meninas quando elas retornarem.
6) Você acha que a resposta do governo nigeriano e da Comunidade Internacional tem sido apropriada e adequada? Se sim, como assim, e se não, por que não?
A resposta do governo nigeriano foi lenta, e isso tem afetado as chances de salvar as meninas. Se os agentes responsáveis pela aplicação da lei nigeriana tivessem respondido rapidamente, teriam tido maior chance de resgatá-las. A comunidade internacional respondeu assim que a notícia se tornou viral no Twitter, e alguns governos (EUA, Reino Unido) têm oferecido apoio de inteligência na localização e libertação. O apoio da mídia, ONGs e personalidades influentes fora da Nigéria tem sido enorme. Realmente, deu esperança de que a visibilidade dada ao rapto pela comunidade internacional irá colocar pressão sobre o governo nigeriano para agir e também serve como um fiscalizador para monitorar as ações e processos do governo.
7) O que você acha da possibilidade de o TPI (Tribunal Penal Internacional) abrir uma investigação formal sobre a situação na Nigéria?
O TPI estava investigando a Nigéria já antes do incidente. Portanto, é só uma questão de tempo até que o TPI se mova para coletar mais informações para ajudá-lo em sua decisão sobre se crimes graves foram cometidos tanto pelo governo quanto por grupos extremistas. O Procurador do TPI, Fatou Bensouda, também emitiu uma declaração condenando o sequestro e as alegações de graves violações em áreas afetadas pela violência.
8) A crítica é de que a intervenção dos EUA poderia levar à militarização da Nigéria, como dito recentemente num artigo publicado pelo inglês The Guardian. Você poderia por favor, compartilhar seu ponto de vista sobre isso?
Esta é uma possibilidade, porque os EUA estabeleceram postos militares em países onde tinham intervido, como no Iraque e no Afeganistão. No entanto, os EUA e Nigéria têm uma relação de longa data, e já houve trocas em outras áreas, tais como comércio, entre os dois países.
9) Qual tem sido a participação dos países vizinhos, a Cedeao (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), outras nações africanas, e da União Africana?
Como eu disse anteriormente, muitas pessoas e instituições de fora da Nigéria têm respondido através de retweets e têm falando sobre o sequestro, inclusive exigindo uma ação mais progressiva e efetiva do governo nigeriano. A Comissão da União Africano emitiu declarações condenando o ataque. ONGs em países vizinhos, incluindo a Libéria e Quênia, organizaram comícios e procissões às respectivas embaixadas da Nigéria em seus países. Chefes de Estado de países que fazem fronteira com a Nigéria, como por exemplo, Camarões, Níger, Chade, participarem de uma reunião de segurança com o presidente da Nigéria, oferecido pelo presidente Hollande em Paris.
10) Em seu comunicado, o Capítulo Sul-Africano de ANNID emite um “apelo aos meios de comunicação internacionais e à Anistia Internacional a minimizar a propaganda política contra o Governo Federal da Nigéria”. O que você acha dessa comunicação? Existem questões que você sente que deveriam receber cobertura, mas recebem?
A mídia internacional complementa informando sobre a situação por meios de comunicação locais e organizações não governamentais. Apesar de que o governo já partilhou algumas das medidas que está a tomar para garantir a libertação das mulheres e combater a violência crescente, ainda há pouca informação sobre o incidente. Por exemplo, nós não sabemos o número exato de meninas raptadas. E a mídia tem de contar com dados que não são completos. Ambos meios de comunicação locais e internacionais têm destacado a maioria das questões. Isso realmente ajudou a projetar os pontos fracos e desafios do setor da segurança e só pode ser um passo na direção certa em manter o governo responsável pela proteção dos direitos humanos no país.