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11/03/2017

Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU: exposição incômoda

Leia artigo de Camila Lissa Asano publicado no Nexo Jornal



No final de fevereiro, em seu discurso de estreia no CDH (Conselho de Direitos Humanos) das Nações Unidas – o primeiro desde que o Brasil retomou seu assento como membro desse órgão –, a ministra de direitos humanos Luislinda Valois afirmou que o país enfrentou de forma “diligente e consciente” a crise no sistema prisional. A resposta às mortes e rebeliões, no entanto, esteve longe de ser adequada: envio das Forças Armadas, insistência na lógica de construção de novas vagas e um presidente que classifica a chacina contra pessoas custodiadas pelo Estado como “acidente pavoroso”.

Valois também apresentou na ONU um Brasil comprometido com o combate à tortura e ao trabalho escravo. O que temos, ao contrário, é um governo que, pela primeira vez na história se empenhou em barrar a divulgação da lista suja do trabalho escravo – segundo a ONU, um dos mais importantes instrumentos no combate à prática, que elenca empresas flagradas com mão-de-obra análoga à escravidão. Mesmo com determinação judicial para divulgação da lista, o governo federal apresentou recursos inéditos pedindo seu adiamento.

Esses são dois exemplos de como, diante de tantas crises de violência e tortura, além de constantes ataques promovidos pelo próprio governo e sua base aliada no Congresso a garantias conquistadas, o governo terá dificuldades em sustentar a imagem de país que respeita os direitos humanos. Nesse cenário, se a volta do país ao CDH tem sido apresentada pela equipe de Temer como um selo de compromisso do Planalto com os direitos e liberdades, a eleição do país representa uma oportunidade poderosa para a sociedade civil de contrapor a narrativa oficial do governo, expondo a distância entre discurso e prática.

É sabido que o Brasil passa por um dos momentos mais difíceis de sua história democrática. Afrontas aos direitos dos povos indígenas e manobras autoritárias do então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para subjugar o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária são apenas dois exemplos dos últimos meses. Ainda como candidato ao CDH, no entanto, o país garantiu à comunidade internacional que se comprometeria com os direitos humanos.

O presidente Michel Temer e seus subordinados já estão sendo cobrados. A emenda constitucional que limita gastos públicos com saúde e educação foi duramente criticada pelo especialista das Nações Unidas para pobreza extrema, Philip Alston. Para ele, a então PEC 55 (aprovada como Emenda Constitucional 95) foi uma “medida radical, desprovida de toda nuance e compaixão”.

O Grupo da ONU para Empresas e Direitos Humanos tampouco economizou nos adjetivos e afirmou que as medidas adotadas pela Samarco, Vale, BHP Billiton e pelo Estado após o rompimento da barragem em Mariana “são simplesmente insuficientes para lidar com as massivas dimensões dos custos humanos e ambientais” da tragédia.

Com a volta ao CDH, o pragmatismo comercial da atual política externa – que tem sido seletivamente estridente com a Venezuela, mas conivente com o Irã – possivelmente se materializará nas posições que o governo assumirá no órgão. O Brasil passará pelo primeiro teste na sessão do Conselho ainda neste mês, quando deverá votar uma resolução sobre direitos humanos no país persa. Em novembro, em debate similar na Assembleia Geral da ONU, o governo brasileiro se absteve. Nada indica que a troca de chefia no Ministério de Relações Exteriores, agora sob o comando de Aloysio Nunes, representará uma mudança de rumos.

A forma pouco construtiva como o governo recebe críticas internacionais passará fatura em breve. Em maio, o Brasil será submetido à Revisão Periódica Universal, uma sabatina que avalia, a cada quatro anos e meio, a situação de direitos humanos nos 193 Estados-membros da ONU. Seu relatório oficial apresentado às Nações Unidas e divulgado na segunda-feira (6), no entanto, ainda está longe de dar uma resposta à altura dos problemas do país.

O documento minimiza problemas graves como o desastre ambiental na bacia do Rio Doce, oferecendo menos de 15 palavras ao tema; ou ignora completamente questões estruturais como a repressão policial em protestos e a aprovação do novo regime fiscal, que congela o investimento público em áreas como saúde e educação pelos próximos 20 anos.

A ausência de temas como esses pode ser explicada pela opção do governo de limitar o relatório a recomendações feitas no ciclo anterior da RPU. A decisão, no entanto, contraria os princípios orientadores da ONU para a elaboração do documento. Segundo o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, o relatório oficial também deveria tratar de “temas novos e emergentes, incluindo avanços e desafios” em cada um deles. Espera-se, por fim, que o governo aceite as boas recomendações feitas por seus pares – diferentemente do que fez o governo de Dilma Rousseff ao recusar, em 2012, uma proposta da Dinamarca sobre a reforma das polícias.

A estratégia de tentar emplacar uma imagem externa positiva para desviar a atenção das mazelas em direitos humanos já é bem conhecida. Mas essas contradições e a atual ofensiva de retrocessos são tão gritantes que será difícil dissimulá-las diante do Conselho.

  • Leia o original aqui.

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