Em fevereiro de 2023 o governo brasileiro apresentou à ONU sua candidatura para voltar a ser membro do Conselho de Direitos Humanos, sediado em Genebra, Suíça. Oito meses depois, no dia 10 de outubro, o Brasil foi eleito para um mandato de três anos no Conselho, o principal órgão de direitos humanos da ONU.
Assim, o país retoma pela sexta vez uma das oito vagas rotativas entre países da mesma região, em um mandato com duração de três anos, com direito à reeleição. As eleições estão previstas para outubro.
Em nota, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que em seu novo mandato, “o Brasil trabalhará pela maior eficiência do Conselho de Direitos Humanos e buscará fortalecer o papel do órgão na prevenção e no enfrentamento das causas estruturais de graves violações dos direitos humanos, com ênfase no diálogo construtivo e na cooperação internacional”.
A Conectas tem uma longa tradição de acompanhar esse processo eleitoral, assim como as discussões e apresentações de candidaturas. O discurso do Ministro Silvio Almeida na ONU, também em fevereiro, evidenciou isso, ao reforçar o compromisso do Brasil com tratados internacionais de direitos humanos.
Naquela altura, Camila Asano, diretora-executiva da Conectas, o discurso do ministro marcou “o comprometimento que a sociedade civil brasileira quer das autoridades diante da comunidade internacional”. Segundo ela, “o pronunciamento reforça a importância do Brasil seguir acordos internacionais, com especial atenção à RPU (Revisão Periódica Universal da ONU)”.
No documento da candidatura ao Conselho, o governo brasileiro sugere uma possível ratificação da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância e da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias, por exemplo.
Ao buscar uma cadeira no Conselho, o governo brasileiro tem defendido que a reestruturação e criação de novos ministérios, como o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério da Igualdade Racial, são indicativos de seu realinhamento na defesa dos direitos. É importante salientar, porém, que não há indicações sobre a questão orçamentária que permitam que esses ministérios executem efetivamente suas políticas e compromissos apresentados.
“A eventual eleição do Brasil não consiste numa chancela sobre a situação do país ou sobre a posição do atual governo, mas sim, num reforço à importância e premência do Brasil seguir ativamente com a implementação de recomendações internacionais com transparência e participação social”, afirma Asano. Para ela, “uma vez que o Brasil se torna membro do Conselho, será preciso retomar um engajamento proativo com mecanismos do Sistema ONU, incluindo a ratificação de acordos pendentes e a realização de visitas de procedimentos especiais”.
De acordo com o documento da candidatura, no que diz respeito aos direitos das pessoas LGBTQIA+, o governo brasileiro demonstra interesse em “aderir ao Grupo de Amigos sobre orientação sexual e identidade de gênero” (a adesão do Brasil ao grupo já ocorreu), em Genebra, e em participar da iniciativa Equal Rights Coalition. Além disso, o Brasil tem a intenção de receber uma possível visita da pessoa especialista em Orientação Sexual e Identidade de Gênero (procedimento especial do tema) e apoiar resoluções além de levar iniciativas similares ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
O governo aponta ainda que as negociações serão orientadas por uma abordagem abrangente, com foco especial em debates e resoluções relacionados a gênero e orientação sexual. Nesse sentido, eles expressam total apoio à renovação dos mandatos de procedimentos especiais nessas áreas e também se comprometem a “aumentar a representação feminina nas delegações brasileiras, bem como em todos os órgãos do Conselho de Direitos Humanos (CDH) e das Nações Unidas”. No entanto, é de conhecimento público que o Ministério das Relações Exteriores não têm indicado mulheres diplomatas para ocupar cargos de embaixadoras em outros países. Essa questão foi objeto de questionamentos ao Ministro Mauro Vieira no Senado Federal durante o primeiro semestre, recebendo críticas da Associação Brasileira das Mulheres Diplomatas.
Em relação aos direitos dos povos indígenas, a postura de apoio a resoluções e mandatos parece refletir uma perspectiva de dar protagonismo aos próprios povos indígenas, reconhecendo sua importância na proteção do meio ambiente e da biodiversidade, bem como no combate à exploração ilegal ou predatória de suas terras. No entanto, esses compromissos carecem de detalhamentos ou prazos definidos. Diante das constantes e atuais ameaças aos direitos indígenas, como o debate em torno do Marco Temporal na Suprema Corte e no Congresso Nacional, percebe-se uma limitação e contradição em relação ao discurso estabelecido na candidatura brasileira.
Essa contradição fica evidente ao afirmarem que irão: “Promover e apoiar iniciativas que fortaleçam as condições necessárias à garantia efetiva de direitos dos povos indígenas, inclusive no que respeita a processos de demarcação de terras, de gestão territorial e ambiental e de mecanismos efetivos de consulta e participação, em plena observância dos direitos dos povos indígenas e conforme estabelecido pela Constituição Federal”, sem, no entanto, incluir explicitamente o compromisso com o consentimento dos povos indígenas em decisões que os afetem.
O documento com os compromissos voluntários assumidos pelo Estado brasileiro afirma que o país pretende “zelar pela efetiva implementação da Declaração e do Programa de Ação de Durban contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as formas correlatas de intolerâncias, nos planos interno e internacional”. Afirma também que o Brasil deverá participar ativamente nas negociações da Declaração das Nações Unidas para a Promoção e o Pleno Respeito dos Direitos Humanos dos Afrodescendentes e “da negociação de um instrumento juridicamente vinculante sobre empresas e direitos humanos.”
Por fim, foram apresentadas algumas ações visando o aprimoramento do espaço cívico e a salvaguarda dos defensores e defensoras de direitos humanos. Uma meta de particular importância é “fortalecer o Programa Nacional de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), com o restabelecimento de seu Conselho Deliberativo, composto, de forma paritária, por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil.”
De maneira específica, no contexto do Conselho, um elemento crucial que deveria ser incluído nos compromissos voluntários é o total respaldo à adoção de uma participação híbrida da sociedade civil no Conselho de Direitos Humanos. Essa abordagem diversificada torna esse espaço fundamental mais democrático. Infelizmente, o Brasil não deixou claro seu compromisso com uma participação ampla da sociedade civil nos fóruns multilaterais.
A plena atenção a esses pontos é essencial para garantir a existência das populações mais vulnerabilizadas e reforçar a certeza de que elas são verdadeiramente importantes para nós.
O International Service for Human Rights (ISHR) e a Anistia Internacional realizaram em setembro uma sabatina com o Brasil e outros países candidatos a uma vaga no conselho. Na ocasião, a delegação brasileira reafirmou os compromissos listados no documento.
Uma pergunta da Conectas, que participou da sabatina, foi feita aos representantes do governo. A questão tratava sobre o compromisso de “promover e proteger os direitos das mulheres, inclusive por meio de ações relacionadas à promoção do direito à saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos”. Ressaltando que abortos inseguros são uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil e as principais vítimas são mulheres e meninas negras, a pergunta quis saber como o governo brasileiro pretende garantir o cumprimento das recomendações do Comitê da ONU contra a Tortura, após revisão do país em maio deste ano, que sugerem a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez.
Na resposta, a delegação afirmou que o Estado brasileiro já tem três possibilidades de aborto legal, mas que tema é de alta prioridade para o Brasil e reconheceu que mulheres negras são mais afetadas pelas desigualdades estruturais que estão relacionadas ao assunto. Em resposta a uma questão sobre os esforços do governo para combater a letalidade policial, o Estado brasileiro reconheceu que há ações imediatas para combater a letalidade policial, que afeta principalmente pessoas negras. Mas que o racismo deve ser encarado como um problema estrutural e que, portanto, precisa ser tratado em diferentes eixos, como saúde e educação.