Por Laura Waisbich e Raísa Cetra, Conectas Direitos Humanos
Qualquer voto nas Nações Unidas é fruto de uma decisão de política exterior, que como outras não estão isentas de controvérsias. Votar contrariamente a uma resolução, costurada no seio de algum órgão onusiano de direitos humanos, é sem dúvida uma importante mensagem política. Há, no entanto, indeferimentos pontuais, e outros sistemáticos. Explorar alguns destes votos contra de Índia, Brasil e África do Sul – os chamados países do Ibas – no âmbito da Terceira Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas e no Conselho de Direitos Humanos da ONU é o que faremos nas linhas a seguir.
Dado que analisar padrões de votos exige, sempre, um exercício interpretativo de fôlego, aqui ambicionamos apenas desenhar um panorama inicial destes “nãos”. Por vezes apontaremos hipóteses para compreender os fatos observados, mas adiantamos que não nos propomos a desvendar todas as múltiplas razões por detrás de cada voto. Na Terceira Comissão, analisaremos as posições dos países do Ibas nas resoluções, emendas e moções de não-ação. Já no Conselho de Direitos Humanos, analisaremos os votos nas resoluções e decisões.[1]
O que significa votar contra
Existem dois tipos de votos contrários em órgãos internacionais que debatem questões de direitos humanos: o voto contra uma resolução ou decisão e o voto contra uma emenda ou moção de não-ação/adiamento do debate. Tratam-se, portanto, de dois posicionamentos distintos. Os primeiros, mais frequentemente mencionados e discutidos, respondem a uma rejeição (integral ou parcial) do conteúdo do texto apresentado (em outras palavras, rejeitam que a autoridade, legitimidade, e/ou eficácia do órgão de manifestar sobre um assunto qualquer).
Tradicionalmente, os votos contrários têm sido usados para evitar que uma questão de direitos humanos seja trazida à tona. Parte-se aqui de um pressuposto, a saber, que – ainda que permeado naturalmente de dinâmicas políticas inerentes ao sistema internacional – a grande maioria das resoluções apresentadas, tem como fim último aprimorar a proteção de direitos em um dado tema ou contexto e não debilitá-la. Sempre bom lembrar que a tendência tem sido a de produção normativa (por meio de resoluções) que visam a expansão de direitos, ainda que recentemente hajam exemplos de resoluções restritivas, cujo conteúdo e essência dão margem a interpretações pouco ou nada progressivas. Exemplo na direção contrária da expansão de direitos foi a resolução de “proteção à família”, aprovada em junho de 2014 no Conselho de Direitos Humanos (CDH), que, entre outros retrocessos, não reconheceu as mais diversas formas de família. Para uma análise do processo de aprovação deste texto, ver análise no site da Conectas[2].
Já no caso de votos em emendas, um voto contrário pode tanto enfraquecer quanto resguardar e/ou assegurar o espirito de proteção aos direitos humanos dependendo tanto do conteúdo da resolução original, quanto do conteúdo da emenda proposta. No jogo político diplomático em órgãos internacionais não é rara a prática de inclusão de emendas que são contrárias ao texto original e que, se aprovadas, modificarão significativamente o sentido desejado pelos proponentes e patrocinadores. Há inúmeros exemplos de emendas nocivas ao texto como um todo. Tomemos como ilustração as seis emendas propostas por Congo, Djibuti, Egito, Malásia, Nigéria, Sudão do Sul, Uganda e Emirados Árabes na negociação da Resolução sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero em setembro de 2014. As emendas buscavam limitar o escopo do texto e resumi-lo a um texto genérico sobre discriminação e violência, excluindo toda menção ao objeto principal da proposta original: as questões de sexualidade e gênero. O texto foi finalmente aprovado e as emendas todas rejeitadas, mas como sustentaram os patrocinadores do texto (Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai): “votar a favor dessas propostas é votar contra a luta contra a violência e a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero – o que é injustificável”.
Por fim, um voto contrário a uma moção de não-ação[3], , normalmente manifesta a vontade política do Estado de que haja avanços na agenda de direitos e ratifica o compromisso com o diálogo em direitos humanos, já que as moções de não-ação, em geral, advogam para o não-debate que impede o desenvolvimento de novas normativas. Raras vezes, as moções de não-ação são utilizadas para conter retrocessos, a exemplo da moção liderada pelo México na 28ª sessão do CDH. Nessa moção, o país pedia o adiamento do debate da resolução sobre terrorismo, que, segundo analistas, apresentava retrocessos em relação às anteriores. Apesar desses casos, entidades da sociedade civil, entre elas a Conectas, já manifestaram que moções de não-ação são medidas procedimentais contrárias aos princípios que governam o Conselho de Direitos Humanos. Destaca-se o princípio do “diálogo internacional construtivo” e a necessidade que de os países participem de “boa-fé” de cada um deles, e não impeçam sua realização.[4]
Partindo de uma perspectiva mais geral, o gráfico abaixo ilustra bem que na contagem absoluta de votos contra (tanto em resoluções e decisões, como em emendas e moções), no período de 2006 a 2014, a incidência de votos contrários é maior na Terceira Comissão da AGNU do que no CDH para os três países. Ficam claras, entretanto, algumas diferenças entre eles: o Brasil optou por votar de maneira contrária sobretudo em casos de emendas e moções; a Índia majoritariamente vota contra resoluções. Já a África do Sul teria um comportamento que mescla aspectos observados nos dois países precedentes: na Terceira Comissão vota majoritariamente contra emendas e moções (como o Brasil) e no CDH vota contra resoluções (como a Índia).
Ainda que proporcionalmente ao total de resoluções o número de votos contrários dos Ibas seja pouco expressivo, é ainda mais importante compreender qual o momento em que esses países decidiram se posicionar dessa maneira. É o que faremos na sessão seguinte, tentando aventar se há um padrão na escolha desses “momentos”.
Há um padrão?
Passemos então à análise mais detalhada do padrão de votos na Terceira Comissão da AGNU, posto que este é o âmbito que mais propiciou desaprovações por meio de votos contrários a resoluções e a emendas/moções. O caso do posicionamento do Brasil na Terceira Comissão é bem característico por nunca ter se posicionado contra uma resolução, e, por repetidas vezes ter se posicionado contra emendas ou moções que alterassem o sentido da resolução. Uma amostra desta oposição sistemática a emendas que ferem o espírito protetivo do texto original é a questão da “Moratória na aplicação da pena de morte” (tema levantado nas 63ª, 65ª, 67ª e 69ª Sessões). Aqui o país mantém-se constantemente a favor da resolução e, portanto, contra as emendas que versam sobre a restrição da influência da ONU na legislação doméstica e que confeririam o reconhecimento de países que utilizam a prática da pena capital; como, por exemplo, a emeda proposta por Botsuana em 2010 (A/C.3/65/L.62) a qual reconhecia a utilização da pena de morte por alguns Estado Membros.
Outro padrão de votos que salta aos olhos nas análises é o posicionamento em relação às resoluções sobre países, principalmente em casos específicos como Mianmar/Birmânia, Irã e Bielorrússia. É sabido que os países do Ibas são bastante céticos ao tratamento de situações de direitos humanos em um país específico, (as chamadas “country resolutions”), sobretudo quando o debate é feito na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque.
No da resolução sobre Mianmar/Birmânia, durante o período de 2007 a 2011, na Terceira Comissão, existiu uma divergência entre os Ibas, com Índia mantendo um posicionamento contrário e Brasil e África do Sul alternando entre a abstenção e o voto a favor. Já o caso do Irã o posicionamento dos três oscila entre o voto contra e a abstenção. África do Sul se posicionou de maneira contrária em apenas duas ocasiões e Índia em 7 resoluções. Por fim, nas resoluções sobre Bielorrússia, somente Índia se posicionou contrária em alguns casos (entre 2012 e 2014 no CDH e em 2007 na Terceira Comissão).
Nota-se pelos exemplos expostos que a Índia, em particular, se opõe mais abertamente a resoluções que versam sobre países tanto no CDH quanto na Terceira Comissão, ainda que não na totalidade das situações. Contrariando esta tendência estão no entanto os casos da situação de direitos humanos na Coreia do Norte e as resoluções tratando de violações cometidas por Israel em território Palestino. No primeiro, Índia alterna entre apoio ao consenso e abstenção, enquanto que no segundo caso, da Palestina, a tendência é o apoio quase que inequívoco.
Assim, apesar de notadamente principiológico, o ceticismo de Nova Déli em relação a este tipo de resolução não se mostra absoluto, fazendo com que o país também opere segundo uma apreciação individualizada dos casos. Na retórica diplomática, teoricamente a Índia acredita ser contraproducente procedimentos “intrusivos ou pouco cooperativos” (termos utilizados pelo governo indiano em sua explicação de voto ao abster-se em resolução, de 2014, sobre accountability no Sri Lanka) nos quais os órgãos de direitos humanos da ONU debatem questões em países específicos sem o consentimento do mesmo. Entretanto, percebemos que há casos em que a análise individual da situação pode alterar os rumos dessa posição “principiológica”.
Em menor medida, Brasil e África do Sul também possuem discursos de princípio em relação a resoluções de país – apesar de no caso desses países essa cautela ser menos demonstrada por meio de votos contra e mais por meio de abstenções. Para o Brasil, por exemplo, uma resolução que fale de uma situação específica de algum país deve propiciar “impacto no terreno” para obter o apoio do governo brasileiro. Esse critério é amplamente manifestado por diplomatas brasileiros, a exemplo da videoconferência pré 28ª sessão do CDH (março/2015), promovida pelo Comitê Brasileiro de Política Externa e Direitos Humanos[5], na qual a Comunidade Baha’i perguntou sobre como seria a posição do Brasil na resolução do Irã daquela sessão. A abstenção posterior do Brasil nessa resolução pode ter alguma relação com essa posição “principiológica” do país, para além da justificativa oficial manifestada pela missão brasileira em Genebra[6]. Ou pode ainda ter relação com outras dinâmicas políticas internas ao Brasil, igualmente determinantes de votos, como por exemplo a maior importância dada aos interesses econômicos e comerciais do país neste início de segundo mandato Dilma Rousseff.
Com relação às resoluções temáticas, cabe dar destaque à oposição sistemática da Índia às resoluções sobre “Moratória na aplicação da pena de morte” na Terceira Comissão sob o argumento de que a ONU erra ao não “reconhecer o direito soberano de cada nação de escolher seu sistema jurídico e de punir crimes de acordo com sua legislação doméstica”. Neste caso a oposição é evidente, dado que o sistema jurídico indiano contempla o uso da pena de morte. Interessante notar que esta resolução sobre pena de morte suscita anualmente intensa profusão de emendas na Terceira Comissão, contra as quais o Brasil tem votado consistentemente desde 2008 (como mencionado anteriormente), buscando salvaguardar assim o espírito da resolução, que condena o uso da pena de morte.
Por fim, um breve comentário sobre os votos contra de Índia, Brasil e África do Sul no Conselho de Direitos Humanos. Desde 2006, em apenas uma ocasião o Brasil emitiu um voto contrário, no caso de uma decisão no ano de 2009 sobre a “Publicação dos relatórios finalizados pela Subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos” (A/HRC/DEC/10/117), aquela que pertencia à antiga Comissão de Direitos Humanos (que precedeu a criação do Conselho)[7].
Índia e África do Sul, por sua vez, passam a votar contra algumas resoluções no CDH em 2009. Nova Déli se opôs, por exemplo, a textos nas temáticas de pena de morte (em 2013 e 2014) e proteção dos direitos humanos em contextos manifestações pacíficas (2014), bem como em resoluções sobre situação dos direitos humanos no Irã (2014) e na Bielorrússia (2012 e 2013). Importante lembrar que, no caso do Irã, a Índia vinha de um histórico de abstenções em 2012 e 2013. Já os sul-africanos, opuseram-se a textos como os que tratam dos direitos humanos na Síria (2014) e no Sudão (2009), bem como em resoluções temáticas como a de manifestações pacíficas (2014) e uma acerca do impacto da discriminação religiosa no gozo de direitos sociais, econômicos e culturais (2009). Constata-se que os “nãos” em Genebra são menos sistemáticos do que os “nãos” em Nova Iorque. Contata-se também que a frequência de votos contrários aumentou no CDH desde 2012. Ainda, destaca-se o pico de votos contrários da Índia em 2014 no Conselho: 4 votos contra, quando em 2012 e 2013 as posições contrárias se manifestaram em apenas uma resolução em cada ano. A África do Sul traz inquietações com um novo pico de votos contrários em 2014. A última vez que isso havia acontecido foi em 2009. Será este um novo padrão emergente? Podemos relacioná-lo à crescente politização do/no Conselho (ironicamente, a praga que acabou por minar por dentro a legitimidade da antiga Comissão de Direitos Humanos)? E se estes palpites estiverem corretos, trata-se de um sinal de alerta para organizações da sociedade civil nos países Ibas e um chamado para que as mesmas monitorem ainda mais de perto o comportamento de seus países na ONU?
Um último comentário. Dada a retórica crítica dos países do Ibas acerca da politização e da seletividade das pautas dor órgãos de direitos humanos, e o uso do voto contrário apenas em alguns casos e temáticas, fica o palpite de que no Conselho será o padrão de abstenções que trará elementos mais instigantes para pensarmos a atuação destes países no órgão. Mas esta será a outra história a ser contada, a dos “talvez”, que indicam quando o país não quer se posicionar.