O STF (Supremo Tribunal Federal) deve abrir a pauta de julgamentos de 2022, nesta quarta-feira (2), com a retomada da análise de um recurso apresentado pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e por ONGs e movimentos sociais participantes da ADFP 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635), conhecida como ADPF das Favelas.
A expectativa é que a Corte esclareça sobre o alcance de medida cautelar deferida para restringir a casos excepcionalíssimos as incursões policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de covid-19. O julgamento está suspenso desde maio, em razão de um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Classificada como uma ação histórica, a ADPF das Favelas agrega diferentes entidades e movimentos sociais em torno do enfrentamento à violência policial. Entenda em 5 pontos a ação que salva vidas de pessoas negras e periféricas.
A ADPF das Favelas é uma iniciativa popular, no judiciário, para enfrentar a violência policial no Rio de Janeiro. O caso foi apresentado ao STF (Supremo Tribunal Federal) em novembro de 2019 pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro). A petição, de um modo geral, questiona dois decretos estaduais que regulamentam a política de segurança fluminense e pede o reconhecimento das graves violações de direitos humanos cometidas pelas forças policiais nas favelas, além da implementação de medidas concretas para reduzir a letalidade e garantir justiça às vítimas.
A ação é movida por diversas entidades, movimentos e coletivos na linha de frente da resistência contra a letalidade policial. Participaram deste processo a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas, Movimento Negro Unificado, Iser (Instituto de Estudos da Religião), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Mães de Manguinhos – e também o Observatório de Favelas, Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), Maré Vive, Instituto Marielle Franco, Conselho Nacional de Direitos Humanos e o CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania). Mais recentemente, o Movimento Mães de Maio também passou a fazer parte da ação como amicus curiae.
Entendendo que as principais vítimas da violência policial no Rio de Janeiro são pessoas negras e pobres, a articulação envolvida na ação pede medidas concretas para reduzir a letalidade e garantir justiça às vítimas. Portanto, os principais pedidos são:
– A implementação e monitoramento de um plano de redução da letalidade policial com ampla participação da sociedade civil e instituições públicas comprometidas com a promoção dos direitos humanos.
– A não utilização de helicópteros como plataformas de tiros.
– O rigor na expedição de mandados de busca e apreensão, a fim de evitar diligências aleatórias e ilegais, bem como na preservação dos locais em casos de crimes cometidos nas operações policiais e de documentação precisa, visando evitar a remoção de indevida de corpos de vítimas ou alteração do local por quaisquer pretextos.
– Absoluta excepcionalidade das operações policiais em perímetros em que estejam localizadas escolas, creches, hospitais e postos de saúde, e a elaboração de protocolos para atuação restrita em casos permitidos.
– Suspensão do sigilo de todos os protocolos de atuação policial e determinação da obrigatoriedade de elaborar, armazenar e disponibilizar relatórios detalhados sobre cada operação policial.
– Instalação de câmeras e equipamentos de GPS nas viaturas e fardas dos agentes.
– Determinação de que sejam instaurados e devidamente investigados os casos de mortes e outras violações causadas por agentes de segurança, respeitando o protagonismo das vítimas e familiares de vítimas e priorizando os casos em que as vítimas sejam crianças e adolescentes.
– A inconstitucionalidade de dispositivo que retirou do cálculo das gratificações dos integrantes de batalhões e delegacias os indicadores de redução de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial.
Em 2020, por conta da pandemia de covid-19, as entidades que participam do caso como amicus curiae solicitaram a suspensão liminar de todas as operações policiais não essenciais. Em uma decisão histórica, o ministro relator Edson Fachin acolheu o pedido, que foi ratificado posteriormente pela maioria do plenário – o único voto dissidente foi de Alexandre de Moraes.
O STF também vetou o uso de helicópteros como plataforma de tiro, restringiu operações policiais em perímetros escolares e hospitalares, determinou a preservação dos vestígios da cena do crime e evitar remoções de corpos para a realização de perícia. No entanto, os ministros não formaram maioria para obrigar o estado do Rio de Janeiro a elaborar um plano de redução de letalidade policial e de controle de violações de direitos pelas forças de segurança fluminense.
Embora pesquisa realizada pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) da UFF tenha demonstrado que após um ano da decisão do STF vidas foram poupadas, o comportamento das polícias não mudou, apenas atuaram menos durante o período.
As chacinas do Jacarezinho e do Salgueiro, causadas por operações policiais em maio e novembro de 2021, respectivamente, dão a dimensão de como o Estado do Rio de Janeiro desrespeita as determinações da Suprema Corte. Ainda que emblemáticas, estas situações não foram isoladas. Mesmo com a ADPF das Favelas, a região metropolitana do Rio de Janeiro registrou 61 chacinas em 2021, sendo as ações ou operações policiais responsáveis por três a cada quatro casos desse tipo ocorridos no período, vitimando 195 civis. Em 2020, foram 44 chacinas, com 170 mortos, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Além das mortes, outras violações são registradas nestas operações policiais.
Ainda em 2021, foi implementado, pelo governo do Rio de Janeiro, o projeto “Cidade Integrada” que, em tese, prevê intervenções sociais por meio da ocupação dos territórios em vários âmbitos. Essas intervenções, no entanto, já começaram pela ocupação de forças de segurança pública nas favelas do Jacarezinho e Muzema, mas o projeto não traz nenhuma medida relacionada à redução da letalidade nessas comunidades.
Na avaliação das entidades que trabalham com enfrentamento à violência institucional, a implementação do projeto não prejudica o julgamento da ADPF das Favelas, mas reforça a necessidade de um plano específico para a redução das mortes ocasionadas por agentes de segurança pública, que conte com a participação ativa das comunidades, não podendo retroceder nas conquistas obtidas com a ADPF ou ignorando os pedidos já elaborados na ação, tampouco repetindo erros de outras intervenções anteriores, como no caso das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), implantadas em 2008.
As organizações da articulação que acompanha a ação já se manifestaram no processo questionando a implementação do projeto nos moldes atuais e pedindo ao STF que, na retomada do julgamento, seja determinado ao Estado do Rio de Janeiro que a prioridade do uso de câmeras recaia sobre os veículos e fardas de agentes de segurança destacados para o policiamento e operações nas favelas e comunidades mais pobres, incluindo, desde já, aqueles envolvidos no projeto “Cidade Integrada” a fim de coibir violações de direitos por parte desses mesmos agentes.