Voltar
-
05/04/2017

Aborto: da ambiguidade ao retrocesso

Segundo pesquisadora Sonia Correa, Planalto nunca se posicionou de forma tão contundente contra a descriminalização do aborto



O acesso a direitos sexuais e reprodutivos voltou à pauta esta semana com a divulgação parcial de uma nota técnica enviada pelo Planalto à AGU (Advocacia-Geral da União) em que o governo do presidente Michel Temer se posiciona contra a descriminalização do aborto.

O documento deve impactar a formulação do posicionamento da AGU sobre a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, proposta pelo PSOL ao STF (Supremo Tribunal Federal) no início de março.

A ação sustenta que a criminalização do aborto no Brasil viola a dignidade e a autonomia das mulheres e pede a suspenção liminar dos artigos do Código Penal que regulam a matéria. A relatoria do caso está sob responsabilidade da ministra Rosa Weber.

De acordo com trechos da nota técnica revelados pelo jornal O Estado de S. Paulo, para o governo federal, “a vida do nascituro deve prevalecer sobre os desejos das gestantes”. O documento afirma, ainda, que “não são o Estado nem as leis que constrangem as mulheres às práticas abortivas clandestinas e arriscadas”.

Sonia Correa, pesquisadora associada da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch), explica o impacto que a posição do governo tem no debate sobre o aborto no Brasil e rebate os argumentos apresentados na nota técnica.

 

Conectas – O que diz a nota técnica 38 do Executivo sobre a descriminalização do aborto?

Sonia Correa – Antes de falar sobre o conteúdo parcial da nota técnica 38 que foi divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo, é importante esclarecer que ela é uma resposta à ADPF 442 apresentada ao Supremo Tribunal Federal pelo PSOL no dia 7/3 e que questiona a constitucionalidade dos artigos do Código Penal de 1940 que criminalizam o aborto.

A ação argumenta que esses artigos ferem os preceitos fundamentais de dignidade e autonomia das mulheres e têm impacto sobre o direito das mulheres à vida, à liberdade, à saúde e de acesso a meios de regulação da fecundidade. A ADPF também sustenta que os efeitos da criminalização são seletivos e mais nefastos para as mulheres negras e pobres e, finalmente, sublinha que o recurso à lei penal nesse caso, como em outros, não se sustenta num teste de adequação, já que a penalização da prática nas últimas sete décadas não tem impedido que as mulheres recorram a ela, colocando em risco sua vida e saúde.

A ADPF inclui um pedido de liminar, ou seja, de ação urgente por parte da Corte. A ministra Rosa Weber, que será a relatora da ação, reconheceu esse caráter de urgência, o que é muito positivo. Para que se inicie o andamento da ação, segundo a Lei 9882 [que regula o processo de julgamento de ADPFs] o primeiro passo é que o Executivo, representado pela AGU (Advocacia-Geral da União), expresse sua opinião sobre a matéria.

A nota técnica da Presidência enviada sigilosamente à AGU – não sei por que razão, já que o debate é público – deve ser interpretada como primeira reação dos atores institucionais interpelados pela ministra Weber. Ela sinaliza para um forte empenho do governo Temer de se posicionar sobre a questão, uma posição que destoa do que tem sido, de maneira geral, o posicionamento do Executivo sobre a matéria – bem mais de “neutralidade”, ou melhor dizendo, de ambiguidade.

Tendo como referência o marco histórico da Constituinte de 1988, que não incluiu no texto constitucional o direito à vida desde a concepção, muito raramente os atores do Executivo se manifestaram a favor ou contra a reforma legal do aborto. Em 1997, o ministro da Saúde [Carlos Albuquerque] expressou sua opinião pessoal dizendo à imprensa que iria pedir ao presidente [Fernando Henrique] Cardoso para vetar uma lei que assegurava serviços de aborto legal no SUS. E, em 2004, para responder uma demanda da 1a Conferência de Política para Mulheres, o governo Lula criou uma comissão tripartite envolvendo o Executivo, o Legislativo e a sociedade para estudar e propor uma reforma legal. Porém, nunca nesses quase trinta anos vimos o Executivo se manifestar de forma contundente contra o aborto como acaba de fazer o governo Temer.

Para saber mais sobre a ADPF:

https://theintercept.com/2017/04/04/aborto-stf-e-palco-da-batalha-definitiva-pela-descriminalizacao/

http://anis.org.br/aborto-movimentacao-e-sinal-de-que-o-tema-e-relevante-para-o-stf/

http://sxpolitics.org/ptbr/acao-no-stf-por-um-debate-mais-racional/7205

 

O que a nota técnica representa para o debate sobre aborto no Brasil?

Além dessa novidade, ou seja, de um franco empenho do Executivo em se posicionar contra a revisão da lei penal do aborto, os trechos da nota que foram tornados públicos são decididamente problemáticos. Por exemplo, ao afirmar que na ordem jurídica brasileira o “valor social protegido é o do nascituro” a nota desconsidera o que eu disse anteriormente, ou seja que a Constituição brasileira não contempla o direito à vida desde a concepção.

Essa definição de 1988 cria condições para que os significados do direito à vida continuem sendo debatidos à luz tanto do desenvolvimento da ciência, quanto das transformações político-culturais e também jurídicas. Também se tomam como referência as normas jurídicas internacionais e reformas recentemente ocorridas em inúmeros países, inclusive na América Latina – como ocorreu na Colômbia (2006), na Cidade do México (2007) e no Uruguai (2012) –, mas também em outros continentes, nos casos do Nepal (2004), de Portugal (2007), da Espanha (2010) e de Moçambique (2015).

O próprio STF mergulhou a fundo nessa reflexão ético-jurídica durante debates anteriores sobre células-tronco e aborto no caso de anencefalia. Como sublinha o texto da ADPF, principalmente no caso da anencefalia, a Corte “reforçou a compreensão da relatividade da proteção infraconstitucional ao feto diante da dignidade da pessoa humana das mulheres e seus direitos à saúde, à liberdade sexual e reprodutiva e autodeterminação”.

Por essa razão, um dos argumentos centrais da ADPF 442 é o da ponderação de direitos entre a vida potencial do embrião e a vida plena das mulheres.  Ao afirmar que a proteção jurídica do nascituro é absoluta, a nota técnica 38 está fazendo uma confusão deliberada entre a intenção dos legisladores que têm proposto reformas nesses sentido, como é o caso do Estatuto da Nascituro, e o que está gravado na normas constitucionais e tem emergido sistematicamente dos debates do STF.

Nesse sentido, recomendo a leitura da seção sobre a matéria no próprio texto da ADPF.

A nota também argumenta que “os representantes políticos da sociedade brasileira têm optado pela proteção dos interesses dos nascituros”. Embora essa frase descreva o clima parlamentar sobre a questão, ela não leva em consideração três aspectos cruciais.

O primeiro deles é que, como bem se sabe, a representatividade do atual parlamento está posta em questão, sob vários aspectos. Sobretudo no que diz respeito à criminalização do aborto. Uma pesquisa de opinião feita em parceria pelo Grupo Católicas pelo Direito a Decidir e Ibope em meados de fevereiro informa que a posição dominante do parlamento sobre a matéria não corresponde à percepção da sociedade.

Segundo os dados, “64% brasileiros defendem que a interrupção da gravidez deve ser uma escolha exclusiva da própria mulher”. O levantamento mostra também que 9% da população acredita que a decisão deve ser dos maridos ou parceiros; 6% do Judiciário; 4% da Igreja, 1% da Presidência da República; e 1% do Congresso Nacional.

Esses resultados indicam que a sociedade brasileira está mais aberta a uma reforma legal do que aqueles que dizem representá-la no Congresso – o que possivelmente é um efeito positivo das manifestações sobre o direito ao aborto que têm tomado as ruas e circulado na imprensa e redes sociais desde 2015.

Finalmente, como se reconhece hoje no debate internacional, o direito ao aborto, assim como outros temas do mesmo teor, não devem ser submetidos às definições majoritárias, pois elas sempre implicam a coação de posições e de direitos daquele que possam ter um visão minoritária sobre a mesma matéria.

Não menos importante, o tom da nota em relação às mulheres é francamente derrogatório. Embora o texto lance mão de uma semântica compassiva quando diz que “a mulher deve ser protegida e acolhida, jamais acossada” (o que deverá cobrado das autoridades competentes), o que prevalece é uma terminologia que leva à caracterização das mulheres que abortam como irresponsáveis e egoístas, movidas por desejo, interesse, vontade, e evacua por completo as condições e contextos que levam uma mulher a interromper uma gravidez – entre eles,  as desigualdades de gênero, raça, renda e acesso a recursos que, lamentavelmente, ainda caracterizam a formação social brasileira.

É também lamentável a nota afirmar que não é o Estado que “constrange as mulheres às práticas abortivas clandestinas e arriscadas” quando se sabe que um elevado percentual das mulheres que abortam no país o fazem por que não tiveram acesso adequado à informação e meios para evitar uma gestação “indesejada”.

 

Qual vai ser o impacto da posição da AGU?

Eu prevejo que a AGU vá acompanhar a posição do Planalto, pois essa é a regra do jogo, não é? Mas espero que ao menos o faça sem usar argumentos sem base jurídica sólida ou terminologias discriminatórias, ao menos para qualificar melhor o debate.

E, como eu disse antes, esse posicionamento é parte do rito. Temos que aguardar a posição do Legislativo e do Ministério Público Federal para fazer uma avaliação mais robusta. Mas como bem disse Luciana Boiteux durante um debate realizado no Rio de Janeiro na semana passada, o que caracteriza um debate democrático é a explicitação e processamento de visões divergentes, e a Corte é elemento constitutivo da formação democrática.

Além disso, é fundamental lembrar que muitas outras posições vão se expressar e ser ouvidas pelo STF, seja na forma de amici curie, seja em audiências. A questão urgente da descriminalização do aborto está colocada com qualidade e força na esfera pública. E isso é o que importa.


Trechos da nota técnica 38 divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 2/4:

Não são o Estado nem as leis que constrangem as mulheres às práticas abortivas clandestinas e arriscadas.

Não se ignoram as angústias e os sofrimentos das gestantes que não desejam prosseguir em uma gravidez, mas o valor social protegido é a vida do nascituro.

Isso significa que o ordenamento jurídico brasileiro já tem dado um devido e adequado tratamento para essa delicada questão individual.

A mulher deve ser protegida e acolhida, jamais acossada. Mas a vida do nascituro deve prevalecer sobre os desejos das gestantes.

Nas democracias republicanas que se revelam sociedades civilizadas e decentes nenhum assunto é tabu inviolável e que não possa ser objeto de debates, deliberações e rediscussões permanentes. Por isso que de tempos em tempos há eleições.

Com efeito, no Parlamento já tramitam projetos legislativos sobre o tema. Os representantes políticos da sociedade brasileira têm optado pela proteção dos interesses dos nascituros. Se acaso houver mudança de orientação, essa alteração deve ser feita via debate político-parlamentar, com a devida vênia.

Entre o sacrifício da existência de um nascituro e o sacrifício dos desejos (ou interesses ou vontades) da gestante, a opção que melhor atende à moralidade social e a ética política, é aquela que preserva a expectativa de nascer do feto (ou de existir do nascituro) em desfavor dos interesses da mulher, salvo nas hipóteses normativas já enunciadas.

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas