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24/02/2016

“A porta de entrada no sistema continua escancarada”

Um ano após sua implantação em São Paulo, audiências de custódia garantem liberdade em menos da metade dos casos e falham em investigar tortura



Evandro se senta diante da juíza, no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, menos de 24 horas depois de ter sido preso em flagrante por receptação qualificada – posse, venda ou compra de produtos roubados. Em pouco mais de 15 minutos a magistrada avalia não ser legal manter Evandro na prisão enquanto aguarda seu julgamento e decide que ele responderá em liberdade depois de pagar fiança no valor de um salário mínimo.

Se tivesse sido preso há um ano, a história seria bem diferente: Evandro se somaria aos mais de 250 mil presos sem condenação definitiva no sistema prisional brasileiro – grupo que corresponde a 41% de toda a população carcerária, segundo dados de junho de 2014 do Ministério da Justiça. Sua prisão provisória, em conjunto com milhares de outras, contribuiria com a superlotação endêmica das prisões de São Paulo, estado que abriga sozinho mais de um terço da população encarcerada do país. Ele dividiria com outros 219 mil presos um espaço projetado para receber apenas 130,4 mil e esperaria meses até ter a chance de ver um juiz e um defensor.

Audiências de custódia como a que determinou a soltura de Evandro completam um ano em São Paulo nesta quarta-feira, 24/2, como parte de um projeto piloto do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Apesar de serem apontadas como uma das principais ferramentas para frear o crescimento acelerado da taxa de encarceramento no Brasil, da ordem de 119% desde o ano 2000, organizações que acompanham de perto a implementação da iniciativa afirmam que ela ainda está longe de cumprir com seu duplo objetivo central – reduzir prisões ilegais, desafogando o sistema, e coibir a prática de tortura.

Segundo dados do TJ-SP, mais de 14 mil casos foram analisados até o dia 30/11, mas apenas 45% das pessoas foram soltas para responderem em liberdade.

“Conforme determinam os tratados internacionais assinados pelo Brasil, a Constituição Federal e o próprio escopo do projeto das audiências de custódia, a liberdade deve ser a regra, não a exceção”, afirma Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas. “As audiências de custódia têm o potencial de soltar rapidamente pessoas que possuem o direito de aguardar seu julgamento em liberdade. Mas, pelo balanço parcial do primeiro ano em São Paulo, é fato que a porta de entrada no sistema carcerário continua escancarada. Isso pode ser explicado pela política de segurança pública estadual que enxerga o alto número de prisões como ‘sucesso’, e também pela ideologia punitivista dos promotores e juízes, que avalizam essa política”, completa.

Em relação aos casos de tortura ou maus-tratos cometidos pela polícia no momento da detenção dos suspeitos, o Tribunal de Justiça paulista informa que, até o último dia 29/1, 1.152 denúncias foram registradas em sua corregedoria. Destas, 857 (74,3%) estariam sendo investigadas. Nenhum agente foi responsabilizado até agora.

“O preso aguardava às vezes meses até ter um primeiro contato com o juiz. Até lá, as provas físicas da violência desapareciam e o Estado perdia a oportunidade de coibi-la”, explica Vivian Calderoni, advogada do programa de Justiça da Conectas. “Com as audiências há uma chance real de romper com a cultura de maus-tratos e tortura que ainda existe no Brasil, sobretudo nas delegacias e presídios, já que pouco tempo depois das agressões a pessoa pode relatar o fato para um juiz, promotor e para seu defensor, além de passar pelo exame de corpo de delito. É fundamental que as instituições do sistema de justiça priorizem esse papel nas audiências de custódia, o que não tem acontecido: promotores e juízes são insensíveis aos relatos de tortura e, muitas vezes, os defensores públicos agem protocolarmente.”

Em outubro do ano passado, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA) avaliou a implementação das audiências de custódia no Brasil. A conclusão do principal órgão de direitos humanos da região foi de que o projeto será apenas simbólico se não servir para investigar casos de tortura denunciados pelos suspeitos. Por outro lado, reforçou a importância de que as audiências de custódia estejam garantidas por lei, de modo que não dependam da iniciativa pontual e temporária do CNJ. Só assim, afirmaram os representantes da CIDH, cumprirão integralmente o que estabelece a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil.

Um projeto de lei (PLS 554/2011) de alcance nacional que institui as audiências de custódia em todo o país está sendo discutido pelo Senado há quatro anos. A Rede Justiça Criminal, da qual Conectas faz parte, elaborou uma campanha nacional para conscientizar a população e os parlamentares sobre a importância do projeto. O protagonista da peça audiovisual é o ator Vinícius Romão, preso em 2014 no Rio de Janeiro depois de ter sido confundido com um assaltante. Vinícius é negro e passou 16 dias na prisão. Assista abaixo:

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