Enquanto a França comemora a decisão histórica de se tornar o primeiro país do mundo a incluir o direito ao aborto na Constituição, o Brasil sofre uma ofensiva contra a justiça reprodutiva e a violação da autonomia das mulheres sobre o próprio corpo.
Embora a descriminalização do aborto tenha se tornado uma das principais reivindicações do movimento feminista no país, pouca coisa mudou na prática e na legislação. Além disso, o fortalecimento da extrema direita aqui e no mundo afora tem fomentado a atuação de grupos antiaborto na política, o que provoca uma série de retrocessos.
Apesar de ter revogado a Portaria do governo Bolsonaro que orientava profissionais da saúde a notificarem casos de abortamento por violência sexual à polícia, o governo atual dá passos tímidos para garantir o pleno acesso a esse direito, devido à pressão de um Congresso majoritariamente conservador.
No fim do mês passado, por exemplo, uma nota técnica do Ministério da Saúde derrubou um documento de 2022 que recomendava um período de até 21 semanas de gestação para realização do procedimento, além de afirmar que “todo aborto é crime”. A legislação brasileira prevê que a interrupção legal pode ocorrer, sem qualquer limite de tempo, em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto.
Contudo, após críticas vindas de parlamentares como a senadora Damares Alves, a nota foi suspensa, sob a justificativa de “não ter passado por todas as esferas necessárias do Ministério”.
A realidade é que, mesmo nos casos permitidos por lei, o acesso ao aborto legal não é um direito efetivado no Brasil. Exemplo disso é que, dos mais de 5.500 municípios brasileiros, apenas 200, ou 3,6%, oferecem o aborto legal nas suas redes de saúde, deixando mais de 37,5 milhões de mulheres, em idade fértil, sem acesso ao serviço no local onde moram.
Além da pouca estrutura e da falta de cobertura da rede pública na prestação do serviço de interrupção da gravidez, o acesso ao aborto legal ainda é criminalizado social e institucionalmente, impondo diferentes tipos de entraves às mulheres, meninas e pessoas com útero. Em 2020, foi emblemático o caso da menina de 10 anos vítima de estupro que teve que ir do interior do Espírito Santo até Recife para conseguir realizar o aborto, tendo seus dados vazados e sendo confrontada por manifestantes antiaborto em frente ao hospital. Outros casos de vítimas de violência sexual chamaram a atenção nos últimos anos, como o de Santa Catarina, onde uma juíza encorajou uma menina de 11 anos a desistir do aborto, e no Piauí, onde uma menina de 12 anos teve o aborto legal negado pela justiça.
Este ano, mais casos vieram à tona, a exemplo do Hospital de Feijó, no interior do Acre, que se negou a realizar um aborto em gestante de feto anencéfalo, e o estado de Goiás, onde está em curso uma “campanha de conscientização contra o aborto”, estabelecida por uma lei que também obriga gestantes a ouvirem os batimentos cardíacos do feto. Em São Paulo, desde 2023 houve a suspensão do serviço de abortamento legal no Hospital de referência Vila Nova Cachoeirinha. Também há relatos de dificuldade para se colocar DIU nas UBS e em hospitais particulares, em mais uma evidente violação ao direito constitucional ao planejamento familiar.
Para a cientista política e professora da Universidade de Brasília, Flávia Biroli, não é exagero dizer que existe um ataque aberto aos direitos das mulheres no mundo, como afirmou em entrevista à Gama Revista. Para ela, os movimentos conservadores vêm se estruturando e articulando discursos para que o aborto se mantenha criminalizado, isto significa que a ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo fortalece a uma maior representatividade de grupos antiaborto no debate público e na política.
“Essa estrutura de oportunidades permitiu contestar um direito fundamental das mulheres em um contexto que a gente pode ver como de enfraquecimento da própria democracia”, afirma Biroli.
“Quando a gente nega o direito ao aborto, negamos um direito fundamental às mulheres, de decisão sobre algo que é muito central na sua integridade física e psíquica, o de ter um projeto de vida.”
Justiça reprodutiva para todas
A fala de Flávia converge com a discussão sobre justiça reprodutiva, termo que vem sendo usado de forma a ampliar o olhar sobre os direitos sexuais e reprodutivos e vinculá-los diretamente à justiça social. Essa ideia trata de garantir que todas as pessoas possam decidir se, como e quando ter filhos, constituir família e ter acesso a recursos e políticas de proteção a esses projetos de vida.
Em um país desigual como o Brasil, isso também toca nas questões sociais e raciais. A última Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) aponta que os índices mais altos de aborto são detectados entre pessoas negras e indígenas, com baixa escolaridade e que são residentes de áreas periféricas.
Não causa surpresa que esse grupo é também o que mais morre ao tentar interromper uma gravidez. Segundo dados disponibilizados pelo IBGE, enquanto entre mulheres brancas a taxa é de 3 óbitos causados por aborto a cada 100 mil nascidos vivos, entre as mulheres negras esse número sobe para 5. Para as que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5, quase o dobro da média geral de 4,5.
A precariedade nos serviços de assistência em saúde nesses locais, a falta de educação sexual nas escolas e de acesso a métodos contraceptivos são alguns dos aspectos que explicam esta realidade, além de contextos de desigualdade e violência de gênero no cotidiano dos diferentes espaços, privados e públicos, que compõem a realidade da maioria das mulheres brasileiras.