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11/11/2013

A caixa-preta dos presídios

Apesar de concentrar violações, sistema penitenciário ainda está longe da fiscalização pública



Presos provisórios encarcerados por anos sem julgamento, falta de assistência médica, enfermos mentais vivendo sem auxílio ao lado de presos comuns. As mazelas que assolam o sistema penitenciário brasileiro vêm se multiplicando longe do escrutínio público. Isso acontece porque, apesar de concentrar violações de direitos humanos, os presídios ainda são lugares quase inacessíveis para a sociedade civil. Hoje, mesmo órgãos de fiscalização como o Conselho Nacional de Justiça enfrentam dificuldades na hora de entrar.

“As unidades prisionais escancaram todas as pequenas falências do Estado de uma maneira muito forte. Isso explica em parte porque as autoridades que são pagas para isso fiscalizam pouco ou, quando fiscalizam, não conseguem resolver o problema”, afirma Rafael Custódio, coordenador de Justiça da Conectas. Em entrevista, ele explica o que está por trás da dinâmica de visitas e inspeções e fala sobre a importância do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão criado pelo governo federal em agosto que pode ajudar a reverter a situação.

1. O sistema penitenciário brasileiro é uma caixa-preta?

Muito se falava, até pouco tempo, da falta de transparência do poder Judiciário, mas a reforma de 2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça, em grande medida mudou essa realidade. Isso não aconteceu no sistema prisional, que continua sim sendo uma caixa-preta. Ainda que o Departamento Penitenciário Nacional tenha uma ouvidoria e conte com profissionais de muita credibilidade, ele não dá conta do trabalho. Os estados, que têm sob sua responsabilidade 90% dos presos do Brasil, ainda resistem muito a prestar contas e a abrir a sua estrutura para a sociedade civil. Há iniciativas pontuais de transparência, mas nada estrutural. Ao contrário: o que existe, muitas vezes, é um esforço para bloquear a informação e o acesso à unidades prisionais.

É curioso ver que no Judiciário, a jurisprudência foi flexibilizando os requisitos que regulavam a participação da sociedade civil no debate constitucional através, por exemplo, do amicus curiae. Gostaríamos de levar essa ideia para a regulamentação que determina quem pode ou não entrar em um presídio. Se o Supremo Tribunal Federal flexibiliza o acesso para um debate dessa envergadura, por que não podemos fazer o mesmo com o acesso às unidades prisionais? Até porque, como mostra a realidade, as autoridades públicas não foram capazes de atuar de maneira satisfatória nesse âmbito.

2. Hoje, quem pode entrar nos presídios?

A Constituição e a Lei de Execuções Penais estabelecem o direito à assistência religiosa do preso. É a partir dessa garantia que as entidades religiosas como a Pastoral Carcerária têm acesso quase que institucionalizado às unidades prisionais. Além disso, o livre acesso é assegurado para os órgãos da execução penal, ou seja, juízes, promotores e defensores públicos. Eles são auxiliados pelos conselhos da comunidade, que idealmente deveriam estar presente em toda comarca onde haja um presídio – o que não acontece. Por outro lado estão o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e os conselhos estaduais penitenciários, que contribuem com a construção de diretrizes e também com a inspeção de unidades. É importante destacar que, embora essa prerrogativa de livre acesso esteja formalizada, nem sempre é possível exercê-la. Existe um esforço de blindar o sistema e mesmo as pessoas que possuem o direito de entrar nem sempre conseguem.

Uma vez lá dentro, o representante da sociedade civil ou o agente público deve ter livre acesso a todos os locais da unidade sem exceção. Eles podem conversar com os presos sem constrangimento e registrar o que eles estão observando em vídeo ou foto. A inspeção não significa entrar e passear por determinados lugares. Ela pressupõe um efetivo conhecimento da realidade.

3. ONGs e imprensa também têm acesso?

Infelizmente, os diretores das unidades prisionais têm muito poder. Entre criar um constrangimento com um determinado diretor e proibir o acesso da imprensa ou de alguma ONG de direitos humanos, as secretarias de administração penitenciária preferem resguardar o diretor. Eles são nomeados políticos do governo estadual, o que gera uma relação muito estreita com a cúpula dos governos. Muitas vezes, você até tem uma autorização, mas na hora da visita é impedido de entrar pelo diretor da unidade. Ele é quase como um xerife. Essa é a situação: o direito já é muito restrito e, nas situações em que se aplica, ainda está sujeito às conjecturas políticas.

4. Que ações podem ser tomadas a partir das visitas?

Em uma unidade prisional você não se depara com uma ou duas violações. Você encontra algumas dezenas, para dizer o mínimo. O problema é tão grande, tão profundo e depende de tantos fatores que às vezes é até difícil lidar com os encaminhamentos que você terá que dar a cada uma das violações constatadas. Você tem presos provisórios esperando há anos por julgamento, doentes sem atendimento, viciados em drogas com crise de abstinência sem receber cuidados, enfermos mentais misturados aos presos comuns. As unidades prisionais escancaram todas as pequenas falências do Estado de uma maneira muito forte. Isso explica em parte porque as autoridades que são pagas para isso fiscalizam pouco ou, quando fiscalizam, não conseguem resolver o problema.

5. E os conselhos? O que eles podem fazer?

Os conselhos da comunidade são muito fracos institucionalmente. Eles são criados e extintos por força do juiz de execução penal e por isso precisam medir a todo tempo os custos das iniciativas para não sofrerem represálias. Depois de todas as visitas, os conselheiros devem elaborar relatórios de inspeção e submetê-los ao juiz de execução daquela comarca e ao promotor. Isso vira um processo administrativo automaticamente e juiz e promotor, teoricamente, tentarão resolver os problemas. O conselheiro leva, portanto, a ilegalidade para a autoridade pública. Mas mais importante que isso, ao meu ver, é o poder de chegar a uma unidade prisional sem avisar. Você vê isso nos olhos dos agentes e dos diretores de presídios. É um sistema tão acostumado a não ser fiscalizado que a visita inesperada dos conselheiros gera uma surpresa incrível. Os diretores passam a ter a sensação de que hoje ou amanhã pode vir alguém e isso por si só já é de enorme importância para coibir violações.

6. Em agosto a presidente Dilma aprovou o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O que mudou?

O primeiro ponto que é preciso destacar é a força normativa do mecanismo, porque ele deriva de um protocolo internacional que o Brasil assinou espontaneamente. Isso tem um peso muito forte porque o País se compromete com a comunidade internacional e vai ser cobrado por ela. Em segundo lugar, sabemos que o governo federal é o ente que tem mais capacidade de articulação por sua força financeira e política – o que agrega bastante legitimidade à nova lei. Por outro lado, o mecanismo foca em um objetivo específico, a prevenção da tortura, o que facilita e dá força ao trabalho de inspeção.

Agora precisamos regular que tipo de estrutura física, material e orçamentária esse órgão terá e detalhar com mais profundidade o sistema de escolha dos integrantes. A informação que tínhamos era de que após a assinatura da lei, um decreto-lei seria publicado em poucas semanas, o que não aconteceu até agora. No mundo real, a situação é a mesma do que há um, cinco ou dez anos. [A regulação da lei aconteceu em 10/12/2013, depois da publicação da entrevista]

7. Por que ainda há tanta resistência por parte dos estados em criar mecanismos locais?

Temos alguns exemplos bem sucedidos de implementação nos estados. No Rio de Janeiro, por exemplo, há um trabalho bastante interessante. No Espírito Santo a lei já foi aprovada, mas o mecanismo ainda não foi instalado por conta da pressão política. São Paulo, por sua vez, talvez seja o estado mais refratário a qualquer iniciativa desse tipo. O mecanismo é visto como uma ingerência – o que explica porque o diálogo avançou tão pouco nos últimos anos. A defensoria pública chegou a encabeçar um anteprojeto de lei, criado com grande participação da sociedade civil. Depois de quase dois anos de reuniões infrutíferas com a secretaria de Justiça, as organizações deixaram grupo de trabalho e agora pretendem articular alguma iniciativa diretamente na Assembleia Legislativa paulista. O mecanismo nacional dificilmente conseguirá agir com a rapidez e a eficiência que o tema exige e, dos 550 mil presos no Brasil, São Paulo abriga cerca de 210 mil. Parece evidente a necessidade de um órgão dessa natureza. Os argumentos contrários não são convincentes, porque o custo para a manutenção desse órgão é muito baixo. Só conseguimos enxergar a falta de vontade do estado em abrir os seus presídios para a sociedade civil.

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