Por Lucia Nader, diretora executiva da Conectas
Desde o fim da ditadura, o Brasil viveu um período de avanço incrível em vários setores. O primeiro e mais óbvio é o da democracia formal. Com eleições livres, os brasileiros voltaram a decidir quem governa o País e quem faz as leis que regem a vida em sociedade. No campo econômico, houve estabilização da moeda, com controle da inflação e outros avanços. No campo social, as políticas de combate à pobreza e diminuição das desigualdades tiveram resultados louváveis. Os índices de analfabetismo e de mortalidade infantil caíram, o ingresso em universidades se estendeu a uma camada antes inalcançada da população e a imprensa se viu livre da inconcebível censura prévia.
Mas há no mínimo dois aspectos da vida nacional que pouco mudaram desde o fim da ditadura. O primeiro deles é o sistema prisional brasileiro. O segundo é a polícia e a forma como ela lida com a sociedade, especialmente com os mais pobres.
Nos anos 1960 e 1970, a tortura era dirigida contra dissidentes políticos. Esta prática brutal continua existindo. Pode não ser mais dirigida contra o “inimigo interno”, os comunistas e opositores, mas segue firme contra as mais de 550 mil pessoas presas hoje no Brasil. Para quem duvida, basta ver o que aconteceu em janeiro do ano passado, na Penitenciária Estadual de Vila Velha III, no Espírito Santo. Lá, 52 presos foram castigados sentando no piso escaldante da quadra do presídio, das 12h às 14h, nus. As fotos recebidas pela Conectas mostram presos sem pedaços do corpo, queimados no chão quente.
A ONU considera que a tortura é sistemática e diária, de norte a sul do Brasil. Isso significa que não se trata de abusos pessoais ou desvios de conduta, mas de uma política integrada ao sistema, um traço da política de segurança da ditadura que custa desaparecer.
De mãos dadas com isso, está a polícia. A violenta repressão contra as manifestações iniciadas em junho apenas deram maior visibilidade entre a elite brasileira para um padrão militarizado e arcaico de uso da força. Trouxe à superfície o fato da polícia ter sido uma das pouquíssimas áreas que não se democratizou com a adoção da Constituição de 1988, mantendo, em seu artigo 144, a polícia militar. Polícia essa que está no topo das mais violentas do planeta, sendo responsável por 5 mortes por dia, 2 mil por ano. O regime hierárquico, as punições disciplinares, o rigor da caserna, as prisões administrativas, o coturno e a ordem unida são elementos que afastam a polícia de uma abordagem civil. O cidadão passa a ser visto como inimigo a ser combatido e não como aquele a quem deveria prestar um serviço e garantir a segurança.
Junta-se a isso a pouca coordenação entre a polícia militar e a polícia civil, fazendo com que na prática tenhamos “duas meia-polícias” – e quase nenhum respeito aos limites da ordem democrática. A cada 100 homicídios apenas 8 são esclarecidos no Brasil, deixando assim aberta a ferida de que, na falta de processos investigativos dignos desse nome, acabemos por tornar a polícia um agente de criminalização da pobreza. Não resta dúvida da prevalência de critérios sociais e raciais na abordagem e investigação policial.
Não se trata de ignorar os avanços. Ninguém em sã consciência nega que é melhor viver num país democrático onde não existem Atos Institucionais derrubando garantias individuais, como aconteceu com o AI-5 e seus dispositivos secretos. Mas a celebração da democracia não pode ignorar o fato de que, nas prisões e na polícia, ainda há muito a ser feito para nos orgulharmos de termos virado a página, 50 anos após o golpe.