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Notícia
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02/10/2025

33 anos do Massacre do Carandiru: memória e desafios do sistema penal brasileiro

Três décadas após o massacre que matou ao menos 111 pessoas, o sistema carcerário brasileiro segue marcado por superlotação, tortura e impunidade.

Antigo Complexo do Carandiru, onde aos menos 111 presos foram assassinados em 1992 no pavilhão nove em decorrência de ação policial Antigo Complexo do Carandiru, onde aos menos 111 presos foram assassinados em 1992 no pavilhão nove em decorrência de ação policial


O Massacre do Carandiru, que deixou ao menos 111 pessoas mortas em 2 de outubro de 1992, continua sendo o maior símbolo da violência prisional no Brasil. Três décadas depois, o episódio segue sem plena responsabilização e revela a permanência de um sistema carcerário marcado por superlotação, violações de direitos e ausência de políticas estruturais.

No final de 2024, o país registrava mais de 909 mil pessoas privadas de liberdade, segundo dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional, Do total, 783.741 estavam em celas físicas ou prisão domiciliar sem monitoramento, 122.102 sob monitoração eletrônica e pelo menos 3.751 ainda sob custódia policial. Os números que não são precisos, escancaram o superencarceramento e reforçam a continuidade da violência estrutural que marcou o Carandiru.

Responsabilização criminal

O processo judicial do massacre se arrastou por décadas. O coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação, foi condenado em 2001 a 632 anos de prisão, mas absolvido em 2006 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sob a justificativa de “estrito cumprimento do dever legal”. Entre 2013 e 2014, 74 policiais militares foram condenados a penas entre 48 e 632 anos. Anos depois, em 2022, o então presidente Jair Bolsonaro concedeu indulto aos condenados — decisão considerada constitucional em 2024, mas ainda contestada pelo Ministério Público por violar tratados internacionais de direitos humanos.

Violações persistentes

O Massacre do Carandiru tornou-se símbolo do uso sistemático da força estatal e da falta de responsabilização. Relatórios recentes confirmam que a realidade não mudou. Em 2023, inspeções do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) denunciaram torturas físicas e psicológicas em presídios paulistas, além do uso abusivo de armas não letais e confinamento prolongado.

A Justiça Federal condenou o governo de São Paulo a implementar o Comitê e  o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e determinando, ainda, a elaboração de um plano de ação. A nível nacional, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam cerca de 153 mil denúncias de tortura no sistema prisional brasileiro em 2024.

Plano Pena Justa

Diante desse quadro, o Supremo Tribunal Federal declarou, em 2023, o “Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema penitenciário (ADPF 347). A decisão na ação que tramita há 8 anos, deu origem ao Plano Nacional para Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras, conhecido como Plano Pena Justa. Coordenada pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) e pelo CNJ, a iniciativa reconhece o racismo institucional como eixo estruturante do encarceramento em massa e busca mitigar seus efeitos, com medidas de qualificação do ciclo penal, desde a porta de entrada até os processos de saída da prisão.

A decisão do STF também determinou a criação de planos estaduais que deveriam ser construídos com a participação ampla e efetiva da sociedade civil. No entanto, muitos estados excluíram organizações, movimentos sociais e familiares de pessoas privadas de liberdade, resultando em abordagens insuficientes para problemas complexos já identificados, como a baixa oferta e má qualidade dos serviços prestados na prisão, a ocorrência de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a insuficiência de medidas de reparação pública, entre outros. 

Memória e resistência

A sociedade civil mantém viva a memória do episódio por meio de iniciativas como o Núcleo Memórias Carandiru, conduzido por educadores/as e sobreviventes do cárcere. O coletivo realiza roteiros no Parque da Juventude — no mesmo local onde funcionava a Casa de Detenção —, e visa recontar a história do massacre na perspectiva de quem sobreviveu à ele e ao sistema prisional. 

Uma carta pública assinada por organizações da sociedade civil, clínicas jurídicas e defensorias reforçou esse compromisso e a necessidade de se manter aberto o Espaço Memórias Carandiru, projeto descontinuado já no início da gestão Tarcísio. O documento recorda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu Relatório de Mérito nº 34/00, reconheceu a responsabilidade internacional do Brasil pelas execuções e ferimentos em 1992, além da violação das garantias judiciais por ausência de investigação e punição efetivas. A CIDH recomendou ao Estado brasileiro a reparação das vítimas, a adoção de políticas de reinserção social e o fortalecimento de iniciativas de memória.

Apesar dessas determinações, a carta aponta que não houve uma política efetiva de reparação. Indenizações foram parciais e os projetos de memória, escassos. O apoio ao Espaço Memórias Carandiru é apresentado como medida fundamental de reparação coletiva, desestigmatização de sobreviventes e enfrentamento da violência de Estado. Entre as recomendações, estão a garantia de financiamento contínuo ao espaço – que está fechado desde 2023 – , a contratação de educadores sobreviventes do cárcere, a revisão da cronologia expositiva para incluir as graves violações de 1992 e a criação de um museu digital.

Um legado que persiste

O Massacre do Carandiru permanece como um marco da omissão brasileira em enfrentar violações massivas de direitos humanos e em construir um sistema de justiça efetivo. Para avançar, especialistas e organizações apontam a necessidade de compromisso coletivo com os direitos humanos, de políticas públicas de memória, reparação para as vítimas sobreviventes e familiares das pessoas vitimadas pela ação e omissão do Estado neste caso e em todos os outros massacres que ocorreram no sistema prisional desde então, além de garantias de não repetição de novas violações.. 

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