Composta por 45 pontos, a agenda legislativa prioritária do governo federal para 2022, divulgada no início deste mês, apresenta pelo menos 10 projetos de lei e propostas de emenda à Constituição que violam os direitos humanos. Os temas vão de propostas para retirar o direito constitucional aos territórios dos povos indígenas a facilitação do acesso a armas de fogo; temas envolvendo os sistemas prisional e educacional também são prioridades na lista do presidente Jair Bolsonaro. É a partir desta agenda que o Planalto deve organizar sua articulação política no Congresso Nacional.
“Vários destes projetos abordam temas tradicionalmente defendidos por Bolsonaro, antes mesmo de sua chegada à presidência, como a redução da maioridade penal, e outros que ganharam atenção maior do presidente nos últimos anos, como os projetos que tentam limitar o direito constitucional dos povos indígenas ao território”, diz Camila Asano, diretora de programas da Conectas. “São propostas que vão contra valores constitucionais e os direitos humanos, violando a legislação nacional e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Além do impacto na vida de diversos grupos, é bastante provável que esta agenda prejudique ainda mais a imagem internacional do país”.
Defendida pela bancada ruralista no Congresso Nacional, a tese do “marco temporal” afirma que o direito ao território deve ser concedido apenas aos povos indígenas que comprovarem que ocupavam ou reivindicavam suas terras na data em que a Constituição Federal foi promulgada (5 de outubro de 1988). Esta tese, no entanto, ignora as violações que os povos indígenas sofreram ao longo dos anos, entre elas, remoções forçadas e extermínios.
O PL 490/2007 já foi aprovado na CCJ (Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça), da Câmara dos Deputados, por 40 votos a 21. A Apib (Articulação de Povos Indígenas do Brasil) afirma que o projeto pode inviabilizar a demarcação de terras indígenas no Brasil e que a proposta avança no Congresso sem a plena participação da sociedade civil, especialmente de representantes indígenas. O projeto está pronto para entrar na pauta do plenário da Câmara.
O texto-base deste projeto de lei votado pelos deputados cria uma nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental e flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo, inclusive, a licença autodeclaratória. Aprovado pela Câmara em maio de 2021, o projeto está no Senado.
Diversos pontos presentes no PL podem causar problemas socioambientais, violações de direitos humanos e prejudicar a imagem internacional do país de forma direta: dispensa de licenciamento para atividades econômicas, licença autodeclaratória torna-se a regra, menos controle estatal, entre outros. O texto tramita na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado.
Enviado pelo governo federal ao Congresso, o PL 6438/2019 altera o Estatuto do Desarmamento e amplia o porte de arma para diversas categorias profissionais, incluindo agentes de trânsito, oficiais de Justiça, membros da Defensoria Pública e agentes socioeducativos. O texto está pronto para ser apreciado na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional na Câmara.
A proposta se insere em um cenário mais amplo em que Bolsonaro, ainda como candidato, demonstrou interesse em facilitar o porte e a posse de armas de fogo no Brasil. Entidades da sociedade civil que trabalham com segurança pública e enfrentamento à violência afirmaram, em diferentes momentos nos últimos três anos, que esta política é nociva à democracia brasileira e à vida da população brasileira. Além disso, de acordo com a pesquisa “Desvio Fatal”, do Instituto Sou da Paz, a flexibilização do acesso a armas de fogo tem impacto direto no mercado ilegal. Entre 2011 e 2020, foram desviadas, em média, 9 armas por dia apenas no estado de São Paulo.
Outra proposta que altera o Estatuto do Desarmamento é o PL 3723/2019, que trata de conceder o porte de armas para colecionadores, atiradores esportivos e caçadores, conhecidos pela sigla CACs. Como o projeto anterior, trata-se de mais uma forma do governo federal cumprir sua tarefa de ampliar o número de armas de fogo entre a população, passando, portanto, a falsa sensação de segurança. Os CACs são o grupo que mais perde armas de fogo adquiridas de forma legal, seja por extravio intencional ou roubo. Só em 2021, pelo menos 840 armas de fogo de caçadores, atiradores e colecionadores foram roubadas ou extraviadas no Brasil. O número representa cerca de três armas perdidas por dia. Os dados, obtidos pela Agência Pública junto ao Comando do Exército via Lei de Acesso à Informação, revelam que o total de armas “perdidas” até setembro de 2021 já supera o de todo o ano de 2020 e o de 2019. O projeto, também de autoria do governo federal, está pronto para a pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
Por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 3/2019, o governo federal e seus aliados no Congresso querem acabar com o auxílio-reclusão, benefício previdenciário destinado a dependentes legais e de baixa renda de pessoas seguradas pela Previdência Social que estão presas.
O auxílio-reclusão está previsto na Constituição Federal e tem o valor de um salário mínimo. Apenas familiares de pessoas que contribuem ao INSS podem receber. Esta não é a única forma encontrada pelo governo para excluir este direito. Em 2019, Bolsonaro já limitou o acesso ao benefício previdenciário por meio da Medida Provisória 871.
Conhecido como “PL do Veneno”, esta proposta, já aprovada pela Câmara, modifica o sistema de registro de agrotóxicos, seus componentes e afins. Pelo texto do projeto, o poder de liberar produtos tóxicos utilizados pela agricultura será concentrado no Ministério da Agricultura, que atende especialmente aos interesses de ruralistas. Hoje, a aprovação de um agrotóxico envolve Ministério do Meio Ambiente e Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), contrapesos importantes e técnicos no processo.
“Este PL visa flexibilizar ainda mais a legislação sobre a venda e uso de agrotóxicos, facilitando, por exemplo, o registro de substâncias cancerígenas, já proibidas em outros países”, avalia, em nota, o Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Após a aprovação na Câmara, o PL foi remetido ao Senado Federal e, atualmente, aguarda distribuição pelo presidente Rodrigo Pacheco.
Em tramitação no Senado, a PEC 115/2015 reduz a maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos. O texto se sustenta no mito de que prender adolescentes que cometerem crimes em presídios em vez de mantê-los em unidades socioeducativas irá reduzir a criminalidade. Na atual legislação brasileira, contudo, os adolescentes autores de atos infracionais já podem ser punidos com a privação de sua liberdade, assim como os adultos. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prevê até três anos de reclusão.
Além disso, o ECA, assim como o Código Penal, prevê outros tipos de punição, como a liberdade assistida, na qual o jovem responde em liberdade, porém sob vigia constante de um tutor ou guarda e fica obrigado a comparecer na presença do juiz periodicamente.
De autoria do poder executivo, o PL é uma franca violação do direito constitucional ao território dos povos indígenas, direito sustentado ainda por tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT, este projeto autoriza a mineração – inclusive por meio de garimpos –, a geração de energia elétrica e a exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos. Organizações indígenas e outras entidades da sociedade civil alertam para os riscos socioambientais do projeto, que afetam diretamente a vida dos povos indígenas e a preservação ambiental. Soma-se os possíveis problemas de contaminação da água de rios que abastece as cidades por conta de substâncias químicas ilegais utilizadas em atividades como o garimpo.
Em nota pública, o Ministério Público Federal considerou a proposta inconstitucional e disse que “a apresentação do PL 191/2020 e as manifestações de apoio ao garimpo emanadas de algumas autoridades explicam, ao menos em parte, o crescimento dessa atividade ilegal em terras indígenas, o que ameaça comunidades indígenas próximas às áreas de garimpo”. Esta proposta aguarda criação de uma Comissão Especial pelo presidencia da Câmara.
De autoria do governo federal, o objeto deste projeto é alterar o ECA e outras legislações que tratam da educação de crianças e adolescentes para facilitar o ensino domiciliar, conhecido pelo termo em inglês homeschooling, no Brasil – prática em que os responsáveis pelas crianças ensinam os conteúdos em casa. Sem ampla discussão com a sociedade, especialmente com especialistas, o projeto visa atender uma demanda de apoiadores mais radicais do presidente Bolsonaro. Esta proposta está pronta para ser analisada pelo plenário da Câmara.
Mais de 350 organizações da sociedade civil afirmaram, em nota, que este projeto é de “extremo risco” para a educação brasileira, pois desobriga o Estado com a garantia do direito humano à educação de qualidade para todas as pessoas e os investimentos no ensino público são imprescindíveis para o avanço educacional no país. Ainda de acordo com a nota, “a regulamentação [do homeschooling] pode aprofundar ainda mais as imensas desigualdades social e educacional e multiplicar os casos de violência e desproteção aos quais estão submetidos milhões de crianças e adolescentes”.
Este projeto flexibiliza as regras de regularização fundiária de terras públicas federais e, na prática, pode dar caráter legal para áreas invadidas e deixar de fiscalizar descumprimento de leis ambientais, já que passa de quatro para seis módulos fiscais o tamanho da propriedade ocupada que poderá ser regularizada com dispensa de vistoria pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). É na vistoria que o órgão analisa reservas legais, áreas de preservação permanente, utilização dos pastos e a exploração da terra. O projeto tramita simultaneamente nas Comissões de Meio Ambiente e de Agricultura do Senado Federal.