São Paulo SP 08 08 2018 Manifestação pela legalização do aborto, Praça Roosevelt, São Paulo. Fotos de Roberto Parizotti.

A notícia estava estampada em todas as manchetes: uma criança de dez anos, vítima de estupro cometido por seu tio, havia engravidado no Espírito Santo. A lei brasileira é clara ao permitir a interrupção da gestação nestes casos, mas isso não impediu uma onda  de violência e intimidação contra a menina e os profissionais de saúde envolvidos no procedimento. 

O governo federal, através do Ministério da Saúde, aproveitou a convulsão para publicar uma portaria tornando obrigatória a comunicação por parte dos médicos às autoridades policiais em casos com indício ou confirmação de estupro. Na prática, as solicitantes de aborto passaram a ter de apresentar evidências de fato e autoria do crime, dificultando ainda mais o aborto nas hipóteses previstas em lei.

A medida foi amplamente repudiada pela sociedade civil brasileira e cerca de 350 entidades endossaram uma nota conjunta contrária à portaria do MS. Em setembro, cinco partidos de oposição ingressaram no STF (Supremo Tribunal Federal) com a ADPF-737 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

Em conjunto com as entidades Geledés e Themis, a Conectas foi admitida no caso como amicus curiae, e sua contribuição ao julgamento foi integralmente formulada e assinada por mulheres negras – grupo mais afetado pelas políticas de cerceamento aos direitos reprodutivos. 

As organizações argumentam que o  procedimento para a realização de abortos legais era suficientemente detalhado e não implicava aos profissionais de saúde a obrigação de notificar as autoridades policiais sobre a possível ocorrência de estupro, e nem mesmo de colher e preservar indícios de um possível crime.

Isso porque a construção da política pública do aborto legal no Brasil parte da compreensão de que os direitos sexuais e reprodutivos das vítimas de estupro não podem estar vinculados à necessidade de responsabilização criminal dos autores desses crimes, tendo em vista as barreiras existentes para a formalização de denúncias criminais. Para as entidades, a portaria do MS vai na contramão dessa perspectiva histórica e cria uma barreira extra de dissuasão para afastar as meninas e mulheres de seus direitos.

O caso entrou na pauta do STF, mas o governo federal, em uma manobra, editou uma nova portaria na véspera do julgamento – o que deixou a ação sem objeto, apesar de as duas portarias serem praticamente iguais. Os peticionários e as entidades admitidas como amicus curiae solicitaram a reinclusão da ADPF na pauta, mas o pedido não foi atendido pelo relator, o ministro Ricardo Lewandowski.

No Brasil, os números da violência sexual contra meninas e mulheres –em especial, aquelas que já sofrem outras vulnerabilidades e violências por conta de sua raça e condição social– são assustadores, apesar da subnotificação. A maior parte da violência sexual é perpetrada por pessoas da rede familiar, enquanto autoridades tentam bloquear qualquer discussão sobre gênero e sexualidade no país.


Ficha técnica

  • Ação: ADPF-737
  • Instância: STF (Supremo Tribunal Federal)
  • Status: Aguardando inclusão na pauta de julgamentos do STF
  • Tramitação:
    • 2/9/20: petição inicial
    • 22/9/2020: Conectas e entidades parceiras são admitidas como amicus curiae
    • 23/9/20: governo edita nova portaria 
    • 24/9/20: caso é retirado de pauta
    • 2/10/20: requerentes pedem que seja recolocado em pauta