Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou em agosto a Resolução n.º 2/2025, adotada em julho, que reconhece os direitos de familiares e pessoas com vínculos afetivos de pessoas privadas de liberdade. O documento do órgão ligada à Organização dos Estados Americanos destaca que o encarceramento em massa e o uso abusivo da prisão preventiva impactam não apenas a pessoa presa, mas toda uma comunidade, em especial filhos, filhas e parceira de pessoas privadas de liberdade, além de afetar desproporcionalmente pessoas idosas e pessoas com deficiência que visitam o sistema prisional.
A resolução é considerada inovadora porque reconhece que a privação de liberdade não tem impactado somente a pessoa presa, como prevê o princípio da individualização da pena: para cada pessoa encarcerada, ao menos cinco outras são diretamente afetadas. Ela também reafirma que a punição não pode se estender, ainda que de forma indireta, a familiares e pessoas próximas.
A CIDH insta, portanto, os Estados a adotar políticas que fortaleçam vínculos familiares, previnam violações e reduzam os efeitos desproporcionais do sistema prisional.
1 – Igualdade e combate à estigmatização – Os Estados devem prevenir discriminações contra familiares, reconhecendo que muitas vezes sofrem tanto ou mais estigma que a própria pessoa presa.
2 – Infância e maternidade – Crianças e adolescentes devem ter prioridade absoluta, com apoio psicossocial e garantia de convivência familiar. A resolução também reconhece violações específicas contra mães encarceradas, separadas de seus filhos ou ameaçadas de perder o poder familiar.
3 – Vínculos familiares como direito – O contato regular entre pessoas presas e familiares é essencial para reduzir danos emocionais, favorecer o retorno à liberdade e combater estigmas. A resolução detalha que esse vínculo deve ser protegido por meio da periodicidade, duração e modalidades adequadas de visita, contrapondo retrocessos recentes no Brasil como a virtualização compulsória e restrição das visitas em determinados contextos ou a extinção das saídas temporárias, provocada pela Lei Federal n. 14.843 de 2024.
4 – Prisão próxima e acessibilidade – Pessoas presas devem cumprir pena em unidades próximas de seus lares, e os Estados devem garantir condições de deslocamento adequadas, especialmente para pessoas idosas e pessoas com deficiência. Os Estados ainda deverão justificar quando realizarem cada transferência para lugares distantes das famílias.
5 – Visitas em condições dignas – A resolução afirma que os Estados devem proibir, sem exceções, as revistas íntimas vexatórias, exige tecnologias não invasivas e prevê a obrigatoriedade de espaços apropriados para encontros familiares, inclusive para crianças pequenas.
6 – Participação e proteção das famílias – Familiares devem ser incluídas nas políticas penitenciárias e reconhecidas como defensoras de direitos humanos. Esse reconhecimento se justifica porque familiares, em especial mulheres, têm assumido papel central na fiscalização das condições carcerárias e no controle social, apesar de essa ser uma responsabilidade primária do Estado. Organizações como a Amparar – Associação de Familiares e Amigos de Pessoas Presas e Internos/as da Fundação Casa e a Agenda Nacional pelo Desencarceramento já documentaram como o cuidado das mulheres se tornou a principal rede de apoio diante da omissão estatal e denunciaram diversas violações de direitos humanos suportadas por familiares e pessoas presas dentro e fora do cárcere.
7 – Informação, transparência e produção de dados – Os Estados devem comunicar às famílias, em linguagem clara, informações sobre estado de saúde, situação processual, transferências ou morte de pessoas presas. Além disso, a resolução introduz como novidade a obrigação de produzir dados específicos sobre familiares de pessoas presas, de modo a subsidiar políticas públicas que contem com sua participação ativa desde a formulação até a implementação.
8 – Redes de cuidado e enfoque diferenciado – O apoio familiar deve ser reconhecido como central para a convivência no cárcere e para o retorno à liberdade. As políticas devem adotar enfoques interseccionais e interculturais, além de considerar as especificidades de famílias atingidas pelos efeitos das mudanças climáticas e desastres socioambientais.
No Brasil, a resolução dialoga com debates em curso no Supremo Tribunal Federal, como a entrega recente dos planos estaduais no âmbito do Plano Nacional de enfrentamento ao Estado de Coisas Inconstitucional, o “Pena Justa”. Embora a matriz do Plano Nacional contenha alguns pontos relacionados a familiares que deveriam orientar a elaboração dos planos estaduais, na prática, a participação de familiares na formulação destes documentos em quase todos os estados foi meramente formal e suas perspectivas pouco ou não incorporadas. A resolução da CIDH reforça que a participação efetiva de familiares deve ser condição para qualquer política prisional que se pretenda legítima e eficaz.
Espera-se que a resolução oriente a formulação de políticas públicas no Brasil e reforce a necessidade de eliminar violações persistentes contra pessoas presas e seus familiares. Entre elas, a revista vexatória, tema de litígio histórico no STF com forte atuação de organizações como a Conectas, simboliza a violência institucional e o desrespeito à dignidade humana. O documento envia uma mensagem importante: proteger os laços familiares, valorizar o papel das mulheres como cuidadoras e reconhecer familiares como atores políticos é condição indispensável para uma justiça efetivamente comprometida com os direitos humanos.