Em agosto, o caso de uma menina de apenas dez anos que engravidou após ser vítima de estupros por cerca de quatro anos cometidos por um familiar, no Espírito Santo, reacendeu um debate legalmente e judicialmente já superado sobre o direito ao aborto em casos de violência sexual.
A realização do procedimento ocorreu após uma série de obstáculos, incluindo a recusa do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes em fazer a interrupção da gestação e a tentativa de grupos religiosos, comandados por deputados estaduais e vereadores, de bloquear o acesso ao hospital de Recife que se prontificou a efetuar o procedimento.
Como foi amplamente noticiado, a interrupção da gravidez está prevista no Código Penal, desde 1940, quando há risco de morte para a gestante e se a gravidez for decorrente de estupro. Já, em 2012, o Supremo Tribunal Federal ainda ampliou este direito a casos comprovados de fetos anencéfalos.
Apesar disso, uma portaria publicada no fim de agosto e assinada pelo Ministério da Saúde passou a determinar uma série de burocracias para a realização do procedimento, incluindo que as equipes médicas obrigatoriamente notifiquem a polícia sobre suas pacientes nestas condições.
Para a advogada, Gabriela Rondon, mestra e doutora em Direito pela Universidade de Brasília e, atualmente, co-diretora da Anis – Instituto de Bioética, a medida “transforma um direito de já difícil acesso em praticamente inviável”.
A Anis, uma organização feminista não governamental fundada em 1999, foi a primeira entidade dedicada à bioética na América Latina e tem como missão promover a cidadania, a igualdade e os direitos humanos a mulheres e outras minorias, tendo a proteção da justiça reprodutiva como prioridade.
Gabriela, que desenvolve pesquisas e ações judiciais com foco prioritário em temas vinculados à justiça reprodutiva e, em 2017, foi uma das autoras da ação constitucional que está em discussão no Supremo Tribunal Federal pedindo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, concedeu entrevista à Conectas sobre o tema. Confira:
Conectas – Como você avalia o acesso ao aborto legal no Brasil de mulheres e meninas que sofreram violência sexual?
Gabriela Rondon – O acesso é extremamente precário. Sabemos que os dados tanto sobre violência sexual como sobre aborto legal no Brasil são frágeis e subnotificados, mas as evidências disponíveis já nos dão pistas sobre a gravidade do fenômeno. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 registrou mais de 66 mil denúncias policiais de violência sexual em 2018, a maior taxa da série histórica. São aproximadamente 180 denúncias diárias. Sabemos ainda que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia e que a última pesquisa nacional de vitimização, de 2013, mostrou que apenas por volta de 7,5% das vítimas de violência sexual reportava o crime. Ou seja, os números podem ser muito maiores, chegando a mais de 880 mil casos anuais, ou 2.400 casos diários, 100 casos por hora, mais de um por minuto.
É claro que nem todas as mulheres e meninas vítimas de violência sexual irão precisar de um aborto legal, mas quando se compara esses números com os apenas 1.968 abortos legais registrados pelo Ministério da Saúde em 2019 percebemos o abismo. O IPEA estima que por volta de 7% das violências sexuais resultem em gravidez. Se tomarmos apenas os casos notificados, que já sabemos não refletir a realidade, teríamos por volta de 4.600 gestações decorrentes de estupro por ano. Os abortos legais anuais não chegam nem à metade dos casos de violência com gravidez notificados, que dirá daqueles que realmente ocorrem. Ou seja, o périplo da menina de 10 anos no Espírito Santo não é excepcional, mas é infelizmente representativo da dificuldade de acesso mesmo nos casos mais óbvios sobre a legalidade da interrupção da gestação.
Outra forma de responder essa pergunta é olhando para os serviços de aborto legal existentes. A Anis, sob coordenação de Debora Diniz, realizou um censo do aborto legal entre 2013 e 2015. Dos 68 serviços à época identificados como de referência para o procedimento, apenas 37 de fato realizavam abortos – ou seja, apenas pouco mais da metade. Em 7 estados não havia nenhum serviço em funcionamento, e em apenas 4 estados havia qualquer serviço fora das capitais. Em vários dos serviços ativos havia ainda barreiras adicionais e ilegais de acesso: 14% exigiam boletim de ocorrência, 11% solicitavam parecer de comissão de ética do hospital, 8% requeriam laudo do IML, 8% pediam alvará judicial e 8% pediam recomendação do Ministério Público. Embora a interrupção da gestação seja um procedimento simples e muito mais seguro que um parto, podendo em tese ser realizado por qualquer profissional da obstetrícia, nem mesmo os serviços de referência se mostram capacitados para tal, o que impõe graves obstáculos ao acesso à saúde de mulheres e meninas.
Conectas – Como esta nova portaria 2.282/2020 do Ministérios da Saúde afeta este direito?
Gabriela Rondon – A portaria transforma um direito de já difícil acesso em praticamente inviável. A principal mudança da portaria está no artigo 1º: sem qualquer respaldo legal, o Ministério da Saúde passa a exigir a notificação do caso à polícia, realizada pelos profissionais de saúde, como condicionante de acesso ao aborto legal. Embora a subnotificação da violência sexual seja evidentemente um problema que afeta o enfrentamento do fenômeno, condicionar o acesso a um direito previsto em lei ao constrangimento de mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade à exposição de seu caso à polícia contra a sua vontade e à violação do dever de sigilo de profissionais de saúde não é o meio de resolvê-lo.
Pelo contrário: a obrigatoriedade de notificação pode amedrontar e afastar as mulheres e meninas da busca do cuidado em saúde. Aquelas que não denunciam o crime imediatamente sabem por que o fazem: o relatório do Disque Direitos Humanos de 2019 mostrou que 73% dos casos de violência registrados aconteceram na casa da vítima ou do agressor. A relação de dependência ou proximidade da vítima com seu violentador transforma a denúncia à polícia em um possível fator de risco de ocorrência de novas violências. Além disso, a quebra do sigilo exigida dos profissionais de saúde para cumprir com o previsto na portaria é ilegal e inconstitucional, e impede o estabelecimento do vínculo de confiança com as pacientes, base do acesso à saúde e da proteção à intimidade, vida privada e dignidade de todas as pessoas com relação a seus direitos mais sensíveis. Se as mulheres e meninas não confiarem nos médicos e outros profissionais da saúde e sequer chegarem aos serviços ou não contarem a eles a verdade, teremos um problema ainda maior de subnotificação e desamparo a essas vítimas.
Por fim, a portaria promove ainda desinformação e atemoriza as mulheres e meninas. Ao modificar o conteúdo dos documentos que devem ser assinados pelas vítimas antes do procedimento para incluir uma lista de supostos riscos do aborto legal, o Ministério da Saúde omite as taxas de prevalência de cada um desses riscos, que são baixos, alguns deles considerados pela Organização Mundial da Saúde como insignificantes, além de ignorar os riscos da não realização do aborto legal à saúde física e mental das mulheres e particularmente das meninas. A seleção de evidências da portaria não se deu com respeito à ciência, mas de maneira ideológica, para induzir à desistência de um direito previsto em lei. Tampouco foi com base em evidências a inclusão de oferta de visualização do ultrassom por essas vítimas. A maioria das mulheres vítimas de violência se recusa a ter qualquer contato com evidências da gestação. Por mais que seja apresentada como facultativa, sabe-se que profissionais de saúde exercem autoridade no contexto clínico, especialmente para pacientes em situação de vulnerabilidade, o que pode fazer com que a oferta seja considerada obrigatória ou condicionante do tratamento, e a experiência de ver o ultrassom se converta em uma cena de intensificação da violência inicial, podendo ser classificada como tortura e maus-tratos a essas mulheres já fragilizadas.
Conectas – A portaria foi publicada semanas depois de um caso emblemático ocorrido no Espírito Santo, envolvendo uma menina de apenas dez anos grávida após abuso sexual de um familiar. Como estes dois fatos estão conectados?
Gabriela Rondon – Infelizmente os dois fatos estão profundamente conectados. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos esteve atento ao caso do Espírito Santo desde o primeiro dia, mas não há nenhum indício de que tenha buscado garantir o direito ao aborto legal da menina de 10 anos, pelo contrário. Tudo indica que a portaria foi a tentativa de seguimento da cruzada ideológica deste governo federal contra a proteção à saúde das mulheres e meninas. Apesar de terem perdido a narrativa pública sobre esse caso, já que a opinião pública se posicionou majoritariamente contra os ataques fundamentalistas de apoiadores do governo e a favor dos cuidados à menina, o governo não abriu mão de tentar tornar o direito ao aborto legal ainda menos acessível. Felizmente, o debate público já não é o mesmo depois desse caso, e já há pronunciamentos desde o Congresso Nacional até ministros do Supremo Tribunal Federal, passando por recomendações de Ministérios Públicos e Defensorias e da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, além de outras entidades profissionais, denunciando a ilegalidade e inconstitucionalidade da portaria. Tudo indica que o episódio do Espírito Santo, ao mostrar a crueldade que o fundamentalismo poderia provocar na vida concreta de meninas violentadas, abriu as portas para um novo momento do debate sobre aborto como uma necessidade de saúde e um ato de cuidado.
Conectas – Em sua opinião, qual é a forma mais adequada de acolher mulheres e meninas vítimas de violência sexual?
Gabriela Rondon – Quando buscam o serviço de saúde, as mulheres e meninas devem ter suas necessidades imediatas acolhidas e atendidas, para que depois, se for o caso, as equipes multidisciplinares as acompanhem na construção de uma segunda fase de proteção, que possa envolver a persecução penal do agressor, se isso for de sua vontade. Não é devido jamais confundir as duas esferas, de saúde e de punição penal, sob pena de não cumprir adequadamente com os objetivos de nenhuma delas.