O oceano é o que garante sustento de muitas pessoas que vivem em comunidades tradicionais no litoral do Ceará. Vem daí a preocupação da pescadora Luciane Santos, do quilombo do Cumbe, com os projetos de energia eólica offshore — que preveem usinas construídas em alto mar. Ela tem conhecimento de causa, já que, há anos, sua comunidade é impactada pelos aerogeradores implantados nas dunas da região.
“A gente não quer que [o projeto de energia eólica offshore] venha para o Cumbe. Só a gente sabe o transtorno que foi e é na nossa vida social e econômica. Disseram que não era pra gente ter medo quando era na terra, imagina agora que é no mar e os impactos vão ser muito maiores”, disse a pescadora, na primeira audiência pública que denunciou a violação de leis por parte do Estado, em maio, com participação da Articulação Povos de Luta (ARPOLU), que reúne comunidades costeiras do Ceará, além da Organização Construindo Poder Popular, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o Instituto Terramar e a Conectas. Durante a audiência, lideranças e organizações da sociedade civil denunciaram violações envolvendo desrespeito a procedimentos de licenciamento ambiental, falta de consulta e consentimento livre, prévio e informado e dinâmicas de racismo ambiental.
A demanda cada vez maior pela produção de energia renovável é uma necessidade urgente em um mundo em emergência climática que não pode mais arcar com os impactos dos combustíveis fósseis e que necessita de alternativas reais de descarbonização. Mas essa mudança pressupõe, necessariamente, respeito às populações mais vulnerabilizadas, especialmente comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas e comunidades pesqueiras que sempre foram as guardiãs dos recursos naturais, do meio ambiente e da preservação da vida. Como afirmou um relatório recente da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, “mudar para uma economia de baixo carbono pode criar empregos e oportunidades, mas deve ocorrer de forma econômica e socialmente justa”. Esse é o principal ponto do conceito de transição energética justa.
De acordo com o diretor de mitigação da ONU para mudanças climáticas, James Grabert, para que a inclusão seja completa, os países precisam elaborar políticas de transição e diversificação econômica abrangentes, inclusivas e baseadas no diálogo social. A fim de evitar o agravamento das desigualdades, tais políticas de transição energética, segundo Grabert, devem ser integradas aos planos nacionais de ação climática, bem como a programas nacionais de adaptação. O que se vê, na prática, é ainda um distanciamento preocupante entre os setores da energia com as implicações climáticas e socioambientais, razão pela qual movimentos como os de pescadores artesanais do Ceará se articulam em defesa de seus territórios e direitos.
O conceito de transição energética justa também foi completamente ignorado na construção do Complexo Ventos do Araripe III, que fica na divisa entre Pernambuco e Piauí.
Em 2020, uma equipe composta por pesquisadores e assessores da Conectas e da IAP (International Accountability Project) visitou a região, a fim de entrevistar famílias que tiveram suas vidas impactadas pelo empreendimento, e constatou que, além de alterar a paisagem do lugar, o complexo gerou transtornos e dividiu a comunidade.
De acordo com os moradores da região, as principais reclamações diziam respeito aos altos ruídos causados pelas hélices, que aumentam drasticamente conforme a força dos ventos, e dificultam o sono das pessoas. O aumento da incidência de raios, assim como a morte de animais, sobretudo, voadores, também foram apontados como fatos novos que passaram a ocorrer após a chegada dos parques eólicos.
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“A energia eólica é uma das alternativas disponíveis para a necessária e urgente mudança da matriz energética fóssil para a renovável. No entanto, para que a energia seja verdadeiramente ‘limpa e barata’, é preciso respeitar as comunidades locais. Os empreendimentos ditos sustentáveis não podem cometer as mesmas violações de direitos humanos que ocorreram na Usina Hidrelétrica de Belo Monte (PA), na Pequena Central Hidrelétrica Capão Grande (PR) e que constatamos na viagem a Araripe”, afirma Julia Neiva, coordenadora do programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas. “É evidente que a produção de energia limpa deve ser fomentada, que o Brasil precisa descarbonizar sua matriz energética, mas não em detrimento das populações locais e de seus direitos.”
Diversas mobilizações, inclusive de alcance nacional, têm alternativas diante do atual cenário. Em setembro de 2022, organizações realizaram o seminário nacional intitulado “A Transição Energética que Queremos: Justa, Popular e Inclusiva”. Idealizado pela Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil, pelo Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental e pelo Comitê de Energia Renovável do Semiárido, o evento aprovou uma carta pública que, além de reivindicar dos candidatos às eleições presidenciais o compromisso com a transição energética, afirmava, de forma contundente, que “deve ser evitada uma transição energética que reproduza um modelo exploratório e violador de direitos”.
Neste ano, as mobilizações continuaram perante o governo federal eleito. Organizações lideradas pelo Grupo de Trabalho sobre Infraestrutura e Justiça Socioambiental apresentaram carta ao presidente Luís Inácio Lula da Silva solicitando uma abordagem transversal de temas ambientais como política de governo e outra, direcionada ao Ministério de Minas e Energia (MME), requisitando que, no marco legal e institucional do planejamento dos empreendimentos de geração de energia renovável, sejam garantidas análises robustas de riscos socioambientais e de viabilidade econômica, assim como o pleno respeito aos direitos das comunidades locais.
Casos como o da Chapada do Araripe e do litoral do Ceará mostram que a transição energética precisa estar alinhada com a garantia integral de direitos humanos. Como alertou o pescador João Batista dos Campos, da praia de Tatajuba, durante a audiência pública no Ceará: “Querem nos destruir porque nosso modo de vida atrapalha o sistema”. À sociedade, às empresas e aos governos resta refletir sobre o tipo de desenvolvimento que acompanha tais empreendimentos de transição energética que, até o momento, têm considerado vidas humanas como um empecilho.