A arquitetura da internet permaneceu aberta e descentralizada nos últimos vinte anos, garantindo o fluxo livre e neutro das informações e a relativa independência dos usuários frente aos provedores. Essa situação é resultado de uma série de decisões políticas fundamentadas, em grande parte, no potencial da rede de neutralizar as diferenças entre receptores e produtores de conteúdos e de promover o desenvolvimento. Mas esse modelo está em risco.
Hoje, empresas da indústria cultural e do setor de telecomunicações estão empenhadas em direcionar o processo de construção coletiva da internet para assegurar a integridade de seus modelos de negócio. O objetivo: que o mundo digital, como o mercado, seja guiado pelas relações econômicas de oferta e demanda.
Esse cabo-de-guerra entre ciberativistas e empresas têm marcado os processos de regulação da internet em todo mundo, com particular importância nos debates sobre a censura prévia de conteúdos e a privacidade dos usuários.
Guardiões da informação
Um dos principais argumentos dos que defendem limites para o poder de influência das empresas na rede através de regulações governamentais é o de que a iniciativa privada (que já controla mais de 90% do que se produz e consome na web) assumirá um papel de “gatekeeper” dos fluxos de informação, controlando e selecionando o que circula de acordo com os seus interesses.
Essa é, defendem os ciberativistas, uma forma incontrolável de censura prévia que já acontece com frequência em redes sociais e sites de busca e é impulsionada pela falta de legislação específica que estabeleça limites claros para a filtragem de conteúdo. No Reino Unido, por exemplo, uma lei aprovada recentemente para diminuir a pornografia na internet tem afetado redes sociais e páginas que tratam da diversidade sexual e o direito de minorias.
Segundo Joana Varon, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, decisões judiciais pouco embasadas e muito amplas, que responsabilizam intermediários privados mesmo quando a fonte da produção de conteúdos é identificada, contribuem para a censura prévia – o que viola o parágrafo 2 do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
“Não se tem em conta o potencial efeito inibitório e os incentivos que essas decisões podem dar aos atores privados para bloquear conteúdos”, afirmou em conferência promovida em agosto pelo Centro de Estudos em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CELE) da Universidade de Palermo, na Argentina. Joana é uma das idealizadoras do documentário “Freenet?”, que debates os crescentes limites à liberdade na rede. “A generalização dessa censura privada afetaria seriamente a livre circulação de informações online.”
Esse efeito em cadeia, impulsionado por sucessivas decisões judiciais favoráveis à filtragem de conteúdos, é chamado de “chilling effect”. Seu maior risco: atribuir aos provedores a responsabilidade por selecionar, segundo os seus próprios critérios (que serão os mais restritivos possíveis, dada a insegurança jurídica), os conteúdos que circulam na rede. “Eles passarão a fazer decisões privadas sobre questões de interesse público”, diz Varon.
Privacidade ameaçada
O processo de controle de conteúdos coloca em xeque, em última instância, o conceito de neutralidade da rede. Os conteúdos da internet, segundo esse princípio, devem ser tratados de maneira igual, independente da origem, tal como acontece na rede elétrica: não importa o que você conecte à tomada, nada será discriminado pelo sistema de cabos que garante o trânsito da energia.
Prova da vulnerabilidade desse pilar é a proliferação de mecanismos para violar pacotes de dados. Um exemplo é o Deep Packet Inspection (DPI). Ele permite a uma terceira parte, que não é emissora ou receptora de informação, inspecionar e filtrar pacotes a partir de critérios como palavra-chave e tamanho. Os pacotes de dados são protocolos que envolvem e protegem a informação, tal como um envelope, e são independentes da infraestrutura de transmissão.
Esses sistemas de controle estão intimamente ligados a práticas públicas e privadas de violação da privacidade dos usuários. Eles acessam, sem o devido processo legal, os conteúdos que fluem de um computador a outro.
O relator da ONU para liberdade de expressão, Frank la Rue, é claro na determinação do que pode ou não ser filtrado. “A internet deve permanecer o mais aberta possível”, afirmou. O procedimento é excepcional e só pode ser aplicado quando estiver previsto em lei de maneira clara e acessível, quando seja a medida mais adequada para alcançar um objetivo e se há violação do parágrafo 3, artigo 19, do Pacto de Direitos Civis e Políticos, que assegura o respeito à reputação, à proteção da segurança nacional, à ordem pública, à saúde e à moral.
“Liberdade de expressão é o direito de buscar e receber informações de qualquer tipo e importar e disseminar informações e opiniões por todos os meios possíveis”, afirmou La Rue. “O acesso à internet não é um direito novo, mas é um elemento necessário no campo dos direitos humanos, da liberdade de expressão, direito de acesso à informação.”