Contar histórias é transmitir conhecimento e momentos. Há contextos em que o ato de contar histórias possui um significado importante: fazer o uso do passado para representar a luta no presente. É isso que Kamutaja Silva Ãwa faz em seu ensaio “Em memória de Tutawa”, publicado na edição 31 da Revista Sur.
Kamutaja é estudante de pedagogia na UFT (Universidade Federal do Tocantins) e presidente da Apãwa (Associação do Povo Ãwa), também do Tocantins. Em seu texto, ela mostra a luta do povo Ãwa, também conhecido como Avá-Canoeiro, desde o século XVIII até os dias atuais, em busca de justiça e direitos sobre seu território. Kamutaja foi uma das quatro bolsistas da edição 31 da Revista Sur. Para a Conectas, ela traz alguns elementos de seu texto.
Kamutaja – Em 1973, quando houve o contato forçado, o meu povo passou a viver sobre a representatividade de um outro povo. Então, nossa representatividade no estado, como povo, não existia.
No decorrer do meu ensaio, eu coloco que a gente iniciou o processo de demarcação e com o início desse processo a gente consegue fazer uma análise das injustiças que o estado cometeu, ali começa a nossa visibilidade. E também quando a gente se apropria das redes sociais: Instagram, o blog que eu comento no artigo, é também uma forma em que a gente se apropriou para ser visível.
Kamutaja – O processo se iniciou através de um estudo da antropóloga Patrícia de Mendonça e da ambientalista Luciana Ferraz para identificação de terras do povo Javaé. E nessa discussão, elas solicitam e enfatizam a importância do povo Avá-Canoeiro também fazer parte desse estudo, porque era uma área utilizada por ambos os grupos.
Foi aí que elas resolveram nos ouvir e o meu avô, minha mãe, que foram sobreviventes do contato forçado de 73, decidiram contar a verdade sobre a história que foi contada por não indígenas e fazer a reivindicação da terra indígena que realmente era só nossa, só do povo Avá-Canoeiro. Aí elas fizeram um GT [Grupo de Trabalho] específico para o nosso povo e tiveram que convencer a Funai [Fundação Nacional do Índio] da nossa existência.
A gente fez a regularização da nossa associação porque a gente passou a entender a importância do nosso povo ter uma representação política através de uma associação. Passamos a compreender como, de fato, ocorria o processo de demarcação. O processo de retomada para nós está sendo um momento em que a gente se unifica como um povo e faz articulações para que não demore, já que vai fazer uma década que a gente tá nessa retomada do território.
E a gente percebe que o que mais está demorando nesse processo é a morosidade das representações que o estado tem mesmo, porque no processo de demarcação, em nenhum momento a gente teve apoio da Funai, no sentido de retomada.
Kamutaja – Desde que a gente iniciou esse processo, eu tenho percebido que o movimento indígena tem se apropriado desse espaço das organizações da sociedade civil para garantir que os seus direitos aconteçam. Por exemplo, pela Conectas eu consegui fazer uma publicação de um artigo que mostra a história do meu povo, a nossa luta pelos nossos direitos enquanto seres humanos, nossos direitos constitucionais, nossos direitos sobre a Terra.
Também temos o apoio do Cimi [Conselho Indigenista Missionário] que ajuda o meu povo Ãwa e outros povos do estado brasileiro. Então, uma das formas que eu vejo que a sociedade civil pode estar atuando, nos ajudando, é o que já vem sendo feito. É escancarar e mostrar que os direitos dos povos indígenas estão sendo violados e que o papel do estado brasileiro, da justiça, é garantir que o nosso modo de vida não seja violado. E que nós também não sejamos e nem aceitamos ser violentados.
Kamutaja – Foi uma situação muito delicada porque quando iniciou a pandemia, nós vivíamos dispersos, nas aldeias dos Javaé e dos Carajás, então a gente não teve essa autonomia de nos organizar em um local específico, só do povo Avá-Canoeiro. E a gente não poder se posicionar como um povo que limita suas regras nessas situações pandêmicas foi muito complicado.
[Tivemos] muito medo também de perder a minha mãe, que atualmente é a única sobrevivente do contato forçado de 73. E assim, na pandemia, a gente percebeu que havia situações, em relação ao processo de demarcação de terra, que poderiam ter sido adiantadas, no sentido de ter agilizado algumas coisas do processo de demarcação.