Empresas privadas buscam em todo o Globo novos locais onde se instalar. Mas como garantir que a perda de garantias para trabalhadores e comunidades locais não continue sendo um dos efeitos mais daninhos da construção desta enorme teia global? Em artigo para o jornal Valor Econômico, Juana Kweitel, diretora de Programas da Conectas, analisa o fenômeno e os limitados resultados da reunião realizada na ONU em dezembro passado para discutir o assunto.
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No Brasil, as vítimas de violações a direitos humanos cometidas por empresas enfrentam inúmeros obstáculos no acesso à Justiça. A afirmação é demonstrada por uma pesquisa desenvolvida pela organização brasileira Conectas Direitos Humanos e a Comissão Internacional de Juristas, de Genebra, publicada no início de 2011.
Na época, analisou-se 13 casos paradigmáticos envolvendo contaminação ambiental, violações a direitos trabalhistas (contratos abusivos e revista íntima), trabalho escravo, pornografia infantil e publicidade infantil abusiva, dentre outros.
Além dos obstáculos gerais para o acesso à Justiça – como o custo do litígio, a morosidade do Judiciário e o desconhecimento de direitos – o estudo mostrou que há ainda um efeito nocivo da relação de dependência econômica entre as vítimas e a empresa, além do poder econômico das empresas em si.
Já em matéria de regulação, os problemas vão da falta de legislação específica sobre assuntos como a responsabilidade da contratante pelos atos da contratada até a regulação sobre publicidade dirigida ao público infantil. O “véu corporativo” (separação da personalidade jurídica que muitas vezes impede de chegar à empresa matriz) é outro problema. Finalmente, a complexidade de provar o nexo de causalidade entre o dano e a conduta da empresa foi o obstáculo que mais dificultou a realização de justiça em vários dos casos analisados, especialmente quando se trata de dano à saúde por contaminação.
A pesquisa foi realizada no mesmo momento em que a ONU debatia a adoção de uma normativa internacional sobre o assunto. Assim, em junho de 2012, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou em Genebra os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos propostos pelo professor de Harvard John Ruggie. Esses princípios – que não criaram novas regras, apenas sistematizaram a normativa já existente – esclareceram três pilares relevantes ao se falar de empresas e direitos humanos. São eles: a obrigação dos Estados de proteger os direitos humanos; a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos e a necessidade de que existam mecanismos de reclamação adequados e eficazes em caso de descumprimento desses direitos pelas empresas.
Quanto à obrigação das empresas de respeitar os direitos humanos três componentes resultam especialmente relevantes. Primeiro, elas devem expressar seu compromisso com o respeito aos direitos humanos por meio de uma declaração política adotada no mais alto nível de direção da empresa, que seja pública e difundida interna e externamente e se reflita nos procedimentos operacionais da empresa (Princípio 16). Não se trata de uma afirmação genérica de respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 como algumas empresas fazem hoje. É necessário ir muito além disso.
A empresa deve avaliar suas operações e refletir profundamente sobre quais são seus riscos. Para isso, deverá analisar detalhadamente as denúncias de que tem sido objeto e adotar uma normativa interna para evitar que fatos como esses se repitam. Assim uma empresa não somente deve manifestar seu respeito pela DUDH, mas afirmar seu compromisso de consulta prévia às populações que podem ser afetadas por suas operações e estabelecer os mecanismos necessários para que o compromisso seja materializado.
Não se trata de uma obrigação passiva “de não fazer”, mas ao contrário: as empresas têm a obrigação de realizar ações para identificar, prevenir, mitigar e reparar os impactos negativos de suas atividades sobre os direitos humanos. Assim, o Princípio 17 fala da obrigação da devida diligência. As companhias devem realizar auditorias em matéria de direitos humanos para avaliar o impacto de suas atividades. Esse processo deve ser contínuo já que os riscos podem mudar no decorrer do tempo.
As empresas também devem criar mecanismos de denúncia eficazes operacionalmente para pessoas que sofrem o impacto negativo de sua atuação. Não se trata de um simples “fale com o presidente” (Princípio 31).
Os princípios foram insuficientes, porém, no tratamento do direito a um remédio judicial efetivo para as vítimas. A própria Alta Comissionada da ONU para os Diretos Humanos, Navi Pillay, lembrou que essa questão tem sido desatendida nos debates recentes.
O Fórum da ONU que aconteceu nos dias 4 e 5 de dezembro em Genebra devia tratar dessas questões. Lamentavelmente, não foi o que aconteceu. O Fórum foi transformado num espaço de compartilhamento de boas práticas, sem colocar no debate os desafios reais que as empresas enfrentam e sem dar a voz às vítimas das violações aos direitos humanos por essas mesmas empresas.
Talvez, o único elemento de esperança tenha sido o lançamento pelo próprio Ruggie na abertura do Fórum do chamado para a negociação de um tratado para regular a questão da jurisdição extraterritorial em casos de violações a direitos humanos por empresas. Isto significa poder julgar no país de origem da empresa, violações a direitos humanos cometidas em outro Estado. É o caso da ação na Corte Suprema dos Estados Unidos contra várias empresas petrolíferas pelos crimes de lesa humanidade cometidos no Quênia entre 1992 e 1995 contra o povo Ogoni. Nessa linha, espera-se também no futuro próximo, ações no Judiciário brasileiro por violações a direitos humanos cometidas por empresas nacionais fora do país.
Juana Kweitel é diretora de Programas da Conectas Direitos Humanos, organização não governamental internacional, sem fins lucrativos.
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