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10/12/2021

“Conectas 20”: Projeto ambicioso mudou lógica de financiamento internacional para Sul Global

Cofundador da Conectas, Oscar Vilhena Vieira, conta como rascunhou constelação contra-hegemônica de ativistas numa embalagem de pizza. Leia texto da publicação "Conectas 20", que celebra as duas décadas da organização



Foi numa noite fria em 1998, no verso de uma embalagem de pizza para viagem, que o advogado Oscar Vilhena Vieira rascunhou parte do ambicioso plano de criação da Conectas. O suporte improvisado lhe veio à mão durante uma animada conversa com o jornalista Gilberto Dimenstein (1956- 2020) e com Paul Martin, diretor do Centro de Direitos Humanos da Universidade Columbia, onde Oscar havia sido pesquisador visitante em 1991.

Ele acabaria por traçar múltiplas conexões entre diferentes nomes de Angola, Colômbia, Índia, Brasil, Indonésia, Argentina e África do Sul criando uma constelação de lideranças em direitos humanos do Hemisfério Sul. “A gente foi mapeando essas lideranças de maneira muito consciente para pedir a elas indicações de jovens ativistas de seu entorno”, lembra ele. “Era um movimento de não reafirmar quem já tinha autoridade, mas de criar novas autoridades.”

A sua intenção ao conectar ativistas do Sul Global ao redor do mundo era criar uma rede amparada por um marco intelectual de modo que essa nova militância contra-hegemônica elaborasse suas próprias ideias e as compartilhasse sem intermediários. 

O projeto tomou forma a partir do evento que marcou a própria origem da Conectas, que foi o I Colóquio Internacional de Direitos Humanos ocorrido em São Paulo, em 2001. O propósito de efetivar uma rede Sul-Sul foi à época tão inovadora que fez com que diversos ativistas, brasileiros e de fora do país, tivessem as primeiras contas de e-mail de suas vidas criadas pelos organizadores do evento.

A percepção de que havia um grande desequilíbrio no eixo Norte-Sul, com espaço reduzido para as organizações de países como o Brasil, já era conhecida de Oscar, mas havia se tornado ainda mais evidente durante essa que era sua segunda temporada de pesquisas em Nova York. Além dos estudos na faculdade de relações públicas e internacionais da Universidade Columbia, ele fez um estágio na Human Rights Watch, entre outras organizações, e conheceu por dentro as engrenagens de grandes organizações internacionais de direitos humanos do planeta. O contraste daquele modelo com a sua experiência nas jovens organizações brasileiras criadas a partir da redemocratização produziu nele um insight. 

“O tipo de relação que a gente tinha com as organizações internacionais era de mandar um fax com informações sobre o que havia ocorrido no Brasil. Eles empacotavam essas informações num belo relatório sobre o cenário de direitos humanos no Brasil e, por conta disso, recebiam recursos desta e daquela fundação”, aponta.

“Caiu a ficha de que tinha uma coisa estranha nessa relação. As organizações internacionais ocupavam espaço, se profissionalizavam e recebiam recursos, enquanto as organizações brasileiras ficavam como fornecedores de informação. Com isso, ficavam sem autoridade interna, capacidade e profissionalização para dialogar com as autoridades brasileiras.”

O principal motor de criação da Conectas está na leitura de que essa relação precisava mudar e de que os países do Sul tinham mais a ganhar nas trocas de experiências entre si do que com organizações das nações do Norte. Essa visão foi elaborada e compartilhada entre Oscar e a economista Malak El-Chichini Poppovic, sua principal parceira nesta jornada e a quem conheceu no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). 

“O que nos fez criar a Conectas foi essa percepção de que precisávamos de organizações mais fortes no Hemisfério Sul para vocalizarmos a nossa visão daquilo que estava acontecendo aqui”, conta. “E isso não seria feito de forma autocentrada. Nós não queríamos ser um novo centro, que galvanizasse todas as atenções e recursos. O objetivo era construir uma estrutura policêntrica de militantes ao redor do mundo.”

Ambos chegaram à mesma conclusão a partir de perspectivas complementares. Ela, de fora para dentro, ao se mudar para o Brasil depois de uma sólida carreira internacional nas Nações Unidas. Ele, de dentro para fora, ao conhecer de perto a máquina de uma das organizações internacionais que recebia as informações que ele mesmo enviava, via fax, nos tempos em que era secretário-executivo da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos.

“O que nos fez criar a Conectas

foi essa percepção de que precisávamos

de organizações mais fortes no Hemisfério Sul para vocalizarmos

a nossa visão daquilo que estava acontecendo aqui”

Foi a partir do trabalho na comissão que Oscar inaugurou sua atuação no campo dos direitos humanos e pôde desenvolver um olhar sofisticado sobre os principais entraves ao avanço dessa agenda no Brasil. A Comissão foi criada em 1983 para investigar e combater violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado dentro de estabelecimentos de privação de liberdade. Foi fundada por um grupo de notáveis que incluía Fernando Gabeira, Eduardo Suplicy, Margarida Genevois, Emir Sader, Marilena Chauí, José Gregori, Maria Helena Gregori, Severo Gomes e o padre Agostinho de Duarte de Oliveira, sob o comando de Paulo Sérgio Pinheiro. 

“Era um grupo de pessoas excepcionais. Perceberam que o fim do regime militar não significava necessariamente o início do Estado Democrático de Direito. E que o autoritarismo socialmente implantado no Brasil não seria superado só porque agora tínhamos eleições”, explica Oscar.

“Eu brinco que minha profissão era arrumar pianos de cauda”, diverte-se. “Todos tinham grandes pretensões. E eu era o jovem que tentava organizar tudo aquilo: visitava presídios, pedia informações para a polícia e fazia relatórios. Foi meu batismo de fogo.”

Na Comissão, Oscar participou do enfrentamento de casos emblemáticos como a descoberta das ossadas de mortos pela ditadura no cemitério de Perus, em 1990, e o massacre do Carandiru, em 1992. As circunstâncias que levaram o jovem Oscar a esse círculo de notáveis são coerentes com os valores da sua criação familiar. Um episódio trágico envolvendo um de seus irmãos, no entanto, poderia ter posto tudo a perder. Mas, ao contrário, acabou aproximando-o ainda mais deste campo e da elaboração de uma visão mais complexa sobre a importância de tais ideias e de sua função social num país desigual como o Brasil.

Nascido em 1966 na região da Serra do Mar, no interior de São Paulo, Oscar cresceu em um ambiente que define como “democrata cristão um pouco de esquerda”. Filho de um delegado de polícia e de uma pedagoga e professora universitária, ele é o mais novo de quatro irmãos, todos criados numa fazenda nos arredores de Paraibuna.

Seu pai foi delegado-geral de São Paulo, posição na qual criou a Delegacia da Mulher, durante o governo de Franco Montoro (1916-1999). Junto com o advogado José Carlos Dias, participou do grupo que buscou reformar as polícias e o sistema penitenciário após o fim da ditadura militar.

Ao cursar Direito na PUC Oscar se engajou no movimento estudantil, que tinha os direitos humanos como uma de suas principais bandeiras de luta, e tomou parte nas grandes manifestações pelas eleições diretas que marcaram o fim da ditadura militar no país. Um ano antes de se formar, em 1987, o entusiasmo com que Oscar acompanhava a abertura política e os debates da Assembleia Constituinte foi subitamente atravessado pelo choque e pela dor: seu irmão mais velho foi assassinado ao apartar uma confusão de rua. 

Como o pai, seu irmão era delegado de polícia e presenciou um grupo de garotos agredir um pipoqueiro. Interveio. E um deles, armado, atirou nele.  

“Esse é o único lado muito triste da minha vida e que criou um paradoxo aos olhos dos outros: como é que eu poderia ser advogado de direitos humanos com tudo isso?”, conta Oscar, que anos depois dirigiu o Instituto Latino-Americano para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud), onde desenvolveu projetos na área de defesa de adolescentes em conflito com a lei. “No Ilanud, busquei associar a defesa de direitos humanos a políticas públicas na área de segurança, como polícia comunitária, controle de armas de fogo e penas alternativas.”

Sensibilizado pela morte trágica do filho de seu delegado-geral e ex-aluno, Montoro levou o pai de Oscar para ser assessor especial do governo no Palácio dos Bandeirantes, onde ele passou a dividir sala com o assessor internacional da mesma administração. 

“Esse assessor internacional era o Paulo Sérgio Pinheiro, um intelectual sofisticado que passou a trabalhar com ele, e ficaram amigos”, relata Oscar. “Quando contei ao meu pai que queria fazer ciência política, ele deve ter achado um desastre, mas disse que lhe parecia muito bom, e armou um almoço para que eu conversasse a respeito disso com o Paulo Sérgio.” Oscar acabaria fazendo seu mestrado e seu doutorado sob a orientação do colega do pai.

“No mestrado, eu fui analisar as decisões do Supremo pós-Constituição e ver como juízes conservadores, que tinham sido empossados pelo regime militar, estavam implementando uma Constituição altamente progressista”, explica. “Eu vi que o Supremo reagia melhor do que eu poderia esperar.“ E foi aí que surgiu a ligação de Oscar com o Supremo, que, anos depois, criaria as bases para o programa de justiça da Conectas e suas ações de litigância estratégica e de amicus curiae (amigos da corte) em causas importantes da agenda de direitos humanos.

“A Conectas se tornou, num determinado ponto, a organização com maior número de amicus curiae no Supremo. Com isso, a organização de certa forma abriu uma trincheira para o que hoje se tornou um percurso comum para qualquer organização”, avalia.

Foi por meio de Paulo Sérgio Pinheiro também que Oscar entraria para a militância deste campo por meio da atuação no secretariado-executivo da Comissão Teotônio Vilela. “Foi a experiência da comissão, o entendimento das grandes organizações e a confiança que tive com a Malak que nos permitiram pensar num projeto ambicioso”, reconhece. 

Para fortalecer as relações Sul-Sul e aumentar sua representatividade internacional neste eixo, no entanto, era preciso não só construir redes de ativismo em direitos humanos, mas também acessar os canais de financiamento. Isso permitiria aos países do Sul lidar com suas questões de maneira mais eficiente e compartilhar soluções. 

Oscar e Malak procuraram Denise Dora, à época na Fundação Ford do Brasil, que, além de contribuir de maneira essencial para a formulação da ideia do que viria a ser a Conectas, organizou um encontro da dupla com a direção geral da entidade em Nova York. “Fomos Malak e eu para Nova York, explicamos o projeto, empolgados, e o diretor disse que tínhamos de buscar recursos no Brasil porque éramos uma organização brasileira”, lembra

Começou ali um jogo de esclarecimentos e de persuasão sobre a Conectas ser uma organização internacional baseada no Brasil e da necessidade de democratização dos recursos necessários a entidades fora do eixo EUA-Europa.

Oscar elaborou o argumento definidor: “Eu perguntei ao diretor à época, Anthony Romero, se o conceito de organização internacional era algo definido pelo zip code”, provocou ele. O questionamento teve impacto imediato e ajudou a redefinir a ideia de organização internacional em qualquer lugar do mundo. “A Conectas foi muito vigorosa nesse diálogo sobre financiadores e organizações e mudou esse jogo não só para nós, mas para muita gente”, admite. “A gente então se juntou com outras organizações da Colômbia e da Argentina e transformou essa ação em um movimento político que está no embrião da Conectas.”

A celebração das muitas conquistas da Conectas ao longo desses 20 anos não ofusca o reconhecimento dos desafios que se colocam na trajetória da organização e do campo dos direitos humanos daqui para a frente. No caso brasileiro, como diz Oscar, alguns desses desafios existem “desde o século 18” e precisam se articular com as questões e visões de futuro.

O choque entre essas duas agendas remete, mais uma vez, a questões de financiamento. “No Brasil, tivemos um problema grande de financiamento. Boa parte da sociedade civil organizada se formou com a transferência de recursos públicos. Com isso, elas se tornam importantes na implementação de serviços de direitos humanos, mas não em questionar”, diz.

Por outro lado, diz ele, o país tem empresas que financiam seus próprios projetos sociais. “É muito difícil ver o setor empresarial preocupado com os problemas brasileiros do século 18 ou com ousadia suficiente para financiar a sociedade civil organizada.”

A partir da atuação de algumas empresas que também emerge outro desafio, em sua visão. Ele está ligado ao papel crescente das corporações na vida das pessoas, às condutas empresariais que geram violações de direitos humanos e a uma legislação que favorece que as empresas escapem à responsabilização.

“Cada tipo de indústria tem um problema de direitos humanos associado. É assim com a mineração, é assim com a tecnologia, por exemplo”, aponta Oscar, que hoje dirige a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, onde criou um Centro de Direitos Humanas e Empresas. 

“Desde os anos 1980 que se está discutindo um tratado com responsabilidades gerais do setor empresarial de multinacionais. Nada passou e isso demonstra uma incapacidade dos Estados de imporlimitações”, explica. Entre os temas cruciais que impactam esse debate, avalia, está um terceiro desafio deste campo: a questão climática, que pede não só regulação das empresas mas um pacto intergeracional. “A comunidade de direitos humanos tem que ser capaz de pensar a questão socioambiental de uma maneira mais ampla e a partir do impacto sobre as novas gerações.

O perfil de Oscar Vilhena Vieira e de outros ativistas centrais na história da Conectas estão na publicação ”Conectas 20”. Veja: 

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