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08/04/2021

Litígio

Crédito: Ana Volpe/JS
Data: 19/11/2008
Local: Brasília-DF

Praça dos Três Poderes. Crédito: Ana Volpe/JS Data: 19/11/2008 Local: Brasília-DF Praça dos Três Poderes.

Usando a Justiça para avançar direitos

Entre as palavras da lei e a vida das pessoas há uma enorme distância, e é comum que os grupos mais atingidos por violações de direitos percebam a Justiça como um sonho distante da realidade. O litígio estratégico é usado hoje por organizações como a Conectas para garantir que as promessas feitas na Constituição Federal e nos tratados internacionais sejam cumpridas pelo Estado brasileiro.

Mas afinal, o que é litígio estratégico? 

Ao contrário do que o termo parece indicar,  o litígio estratégico se refere mais ao tipo de impacto que ele busca provocar do que à forma como é feito. Trata-se de uma ferramenta de incidência judicial ou administrativa para transformar a maneira como o Direito e a Justiça lidam com violações de direitos humanos. O que se quer, com um caso de litígio estratégico, é confrontar o Estado e empresas de forma direta e alcançar mudanças estruturais a partir de casos judiciais singulares. 

A utilização do litígio estratégico pode, entre outras coisas, promover direitos ainda não garantidos e ampliar a interpretação de direitos já definidos; questionar a ausência, o conteúdo e a forma de políticas públicas; interromper ou reparar uma violação; criar precedentes judiciais positivos e com efeito multiplicador na sociedade; e visibilizar causas silenciadas pelo debate político.


“A participação da sociedade civil no debate constitucional é fundamental para garantir que as leis não sejam letra morta e sirvam, de fato, para proteger direitos nas pontas do sistema de Justiça.”

Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas


Um exemplo de como o litígio estratégico pode ter efeitos positivos imediatos para a população é a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, apelidada como ADPF das Favelas, que suspendeu as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante pandemia de Covid-19. A ação foi proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), mas sua construção foi coletiva e envolveu a participação direta de diversos movimentos e entidades que estão na linha de frente da luta contra a violência policial. Eles foram incorporados ao processo na qualidade de amici curiae (amigos da corte).

Clique aqui para consultar a biblioteca de casos de litígio estratégico da Conectas.

Essa luta vem de longe

No Brasil, o uso de ferramentas judiciais para provocar transformações sistêmicas remonta ao século XVIII. À época, o advogado abolicionista Luiz Gama utilizou abordagens judiciais inovadoras para conquistar a liberdade para centenas de pessoas escravizadas. 

Hoje, diversas organizações da sociedade civil combinam práticas de comunicação, incidência política e litígio para articular reivindicações e fazer avançar suas demandas. Na Conectas, o uso desta ferramenta teve início em 2003 com a criação do programa Artigo 1o, que tinha o objetivo de confrontar violações cometidas pelo Estado, proteger avanços legislativos e ampliar direitos. 

O atual programa de Litígio Estratégico da organização tem trabalhado para articular casos cada vez mais plurais e inovadores, que garantam direitos e transformações reais a grupos historicamente impedidos de acessar a Justiça.

Ao longo desse período, diversos casos ajudaram a provocar avanços na defesa de direitos. Um deles é o habeas corpus coletivo concedido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) a adolescentes em regime socioeducativo na Unidade de Internação Regional Norte, no Espírito Santo. A ação proposta pela Defensoria Pública do Espírito Santo com apoio da Conectas demandava um limite à superlotação – o centro possuía apenas 90 vagas, mas abrigava 250 pessoas – e denunciava diversas violações cometidas contra os adolescentes. 

Em uma decisão histórica, o ministro Edson Fachin não só acolheu o pedido, como também determinou a aplicação da sentença em todos os locais de cumprimento de medida socioeducativa do país.

O litígio estratégico na prática

A Constituição Federal de 1988 inaugurou o processo de abertura do sistema de Justiça brasileiro a setores mais amplos da sociedade. Até então, por exemplo, apenas a Procuradoria-Geral da República  podia apresentar demandas ao STF.  Com o passar dos anos, diversos outros instrumentos legais ajudaram a consolidar e ampliar esse espaço, como é o caso das leis que consolidaram o uso do amicus curiae, que permite que grupos e organizações apresentem argumentos independentes em casos com repercussão em toda a sociedade. É através desta e de outras ferramentas jurídicas que o litígio estratégico acontece. 

Essas são algumas das principais formas de incidência no sistema de Justiça para a defesa de direitos humanos:

    • ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental)
      A quem pode ser dirigida: ao STF
      Para que serve: a ADPF busca evitar, suspender ou reparar dano a algum princípio básico da Constituição resultante de ato ou omissão do Poder Público.
    • ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade)
      A quem pode ser dirigida: ao STF
      Para que serve: a ADI é utilizada para anular leis, trechos de leis ou atos normativos que contrariam direitos expressos na Constituição Federal.
    • ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade)
      A quem pode ser dirigida: ao STF
      Para que serve: a ADC busca justamente o contrário da ADI, ou seja, a declaração de que uma lei, trecho de lei ou atos normativos são compatíveis com a Constituição.
    • ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão)
      A quem pode ser dirigida: ao STF
      Para que serve: a ADO serve para sanar um caso de omissão por qualquer ente do Poder Público na efetivação de um direito previsto na Constituição.
    • ACP (Ação Civil Pública)
      A quem pode ser dirigida: à justiça comum, federal e estadual
      Para que serve: a ACP é utilizada para proteger direitos difusos e coletivos. Os direitos difusos são aqueles de toda a coletividade  – como o direito a um meio-ambiente equilibrado, à segurança pública e à saúde. Os direitos coletivos atingem de maneira específica grupos afetados por uma violação comum, como por exemplo pessoas privadas de liberdade, comunidades atingidas por crimes ambientais, etc.
    • Habeas Corpus
      A quem pode ser dirigido: a qualquer órgão com função jurisdicional
      Para que serve: para prevenir ou reverter violência, coação, abuso de poder ou restrição da liberdade de movimento (liberdade de ir, vir ou permanecer) a qualquer pessoa. Mais recentemente, tem sido aceita também a modalidade coletiva.
    • Amicus curiae (amigo da corte)
      É um documento jurídico que permite levar para o processo opiniões independentes sobre o tema em análise, contribuindo para que o processo de tomada de decisão por parte dos juízes seja mais plural e democrático. Nos últimos anos, o amicus curiae permitiu que entidades da sociedade civil participassem de forma vibrante e decisiva em casos de direitos humanos, inclusive com voz durante audiências públicas.

Geralmente, o litígio estratégico é voltado para os diferentes tribunais que formam o sistema de Justiça brasileiro. Mas ele não precisa parar aí. Muitas ações podem estar voltadas para órgãos sem função jurisdicional, mas que têm papel decisivo no debate legal, como por exemplo o Conselho Nacional do Ministério Público e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A Conectas tem apostado cada vez mais em abordagens inovadoras, que ampliem as possibilidade de utilização do litígio estratégico e provoquem todos os atores do sistema de Justiça a se posicionarem em temas caros à defesa de direitos. 

Quando as possibilidades de ação no sistema judicial brasileiro se esgotam ou estão bloqueadas por fatores políticos, também é possível levar um caso de litígio estratégico aos sistemas internacionais de direitos humanos. Um deles é o Sistema Interamericano, que faz parte da estrutura da OEA (Organização dos Estados Americanos) e teve um papel histórico na busca por Justiça após o fim das ditaduras na América Latina. 

Sistema Interamericano de Direitos Humanos:

    • CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos)
      Criada em 1959
      Sede: Washington D.C., Estados Unidos
      O que faz? Promoção e monitoramento dos direitos humanos na região. Emite recomendações e medidas cautelares. Caso essas não sejam cumpridas, pode levar o tema à Corte Interamericana.
    • Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos)
      Criada em 1978
      Sede: San José, Costa Rica
      O que faz? Emite, com força obrigatória, medidas provisórias para prevenir ou cessar violações, além de sentenças contra os Estados por violações de direitos humanos. Em suas decisões, determina também formas de reparação e de não repetição. As decisões possuem grande potencial de impactar políticas públicas – a criação da Lei Maria da Penha no Brasil é um grande exemplo.

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