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27/11/2014

Mapa das prisões

Novos dados do Ministério da Justiça retratam sistema falido

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Mapa das prisões | Fontes | Brasil X Mundo | Acesso à Justiça | Encarceramento em massa |

Perfil do preso | Estrutura | Alternativas penais

O Ministério da Justiça divulgou nessa semana, com um ano de atraso, os números mais recentes sobre o sistema prisional brasileiro. Os dados mostram que, cada vez mais, a prisão tem sido usada como regra, e não exceção – ao contrário do que determinam as leis e normas internacionais de direitos humanos. Em junho de 2013, o Brasil tinha 574.027 pessoas presas – a quarta maior população carcerária do mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. A taxa de encarceramento, índice que calcula o número de presos em cada grupo de 100 mil habitantes, saltou de 287,31 para 300,96 em apenas seis meses.

Como se verá a seguir, em análise exclusiva feita pela Conectas, o País cresce rapidamente no ranking de nações com as maiores populações carcerárias. Hoje, perde apenas para Estados Unidos, China e Rússia. Ao mesmo tempo, tropeça em garantir acesso adequado à justiça. Segundo os novos dados do Ministério, mais de 43,8% dos presos brasileiros não têm condenação definitiva (no balanço anterior, de dezembro de 2012, eles somavam 41,8%). Esse quadro é responsável pela superpopulação das unidades prisionais e pelo consequente aumento nas violações contra os internos. Em todo o país, faltam 256 mil vagas.

“Essa é a receita da falência do sistema: prende-se demais, não se fornece acesso adequado à Justiça, as unidades prisionais ficam superlotadas e a capacidade de proporcionar as condições adequadas para a ressocialização do preso é drasticamente reduzida”, afirma o advogado Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas. “O Brasil se mostrou incapaz de rever uma estratégia que, nos últimos anos, só conseguiu produzir violações. É um vexame.”

Mapa das prisões

O sistema prisional brasileiro é uma caixa-preta. Além de quase inacessíveis para a sociedade civil, os presídios são controlados politicamente. A obtenção de qualquer informação mais detalhada sobre o que acontece ali depende, antes de tudo, da boa vontade dos diretores e da secretaria estadual responsável pela administração penitenciária.

A imposição desses filtros impede avaliações mais apuradas dessa estrutura frequentemente qualificada como medieval: nenhum número é exaustivo e dados isolados são incapazes de fazer uma fotografia aproximada da realidade.

Na tentativa de furar esse bloqueio, Conectas publicará regularmente, nesta página, os dados públicos mais recentes sobre a situação dos presídios brasileiros, como os divulgados essa semana pelo Ministério da Justiça. Isso será sempre feito a partir de uma perspectiva crítica e, ao mesmo tempo, analítica.

O objetivo: desenhar um cenário cada vez mais complexo e atualizado da situação, pautando com dados o debate sobre segurança pública e contribuindo com a formulação de soluções mais adequadas para os principais problemas do sistema.

Fontes

Os dados utilizados pela Conectas na elaboração das visualizações vêm, principalmente, do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça. Outras fontes, como o International Center for Prison Studies, do Kings College de Londres, também ajudam a compor o mapa.

Todas as informações devem ser lidas com ressalvas. O Ministério da Justiça, por exemplo, faz seus balanços semestrais com base em dados fornecidos pelos governos estaduais, responsáveis pela maior parte dos complexos prisionais brasileiros. Esses dados não são checados pelo MJ e estão sujeitos às leituras e parâmetros estabelecidos por cada administração.

Isso dá origem a distorções como a que se viu em São Paulo, onde o governo passou a contar como vaga os espaços de enfermaria e castigo. O efeito numérico – e irreal – foi instantâneo: a superlotação no estado caiu de 90% para 70% de um dia para o outro. Essas mudanças nos critérios são absorvidas acriticamente pelo MJ em seus relatórios. Apesar dos problemas, as estatísticas do Ministério ainda são as mais completas e detalhadas.

O CNJ trabalha com outra metodologia, baseada em levantamentos feitos nas varas de execução penal. O último balanço, publicado em junho, incorporou à conta os presos em regime domiciliar, o que gerou uma diferença de quase 30% em relação à população carcerária apontada pelo MJ. Esses dados também precisam ser lidos com cuidado, principalmente porque o Conselho não determina o período abarcado pelos relatórios – que não são periódicos e dependem, em grande medida, das informações repassadas pelos juízes.

Por conta das falhas nos dados oficiais, dos quais dependem o desenho das fotografias do sistema e a formulação de políticas, é imperioso que a administração pública, em todos os níveis, passe a dar mais prioridade para a produção de informações confiáveis e com metodologias claras.

 Brasil X Mundo

As diferenças no processamento dos dados também impactam o posicionamento do Brasil nos rankings globais especializados. O mais completo, do International Center for Prison Studies, coloca o país na 4a posição, atrás de Estados Unidos, China e Rússia.

Se considerarmos os dados do CNJ, e não os do MJ, saltamos para a 3a posição. A comparação, no entanto, não seria a mais apropriada, já que se desconhece a inclusão de presos em regime domiciliar na população carcerária dos demais países.

Assim mesmo, os desafios metodológicos não conseguem esconder as evidências de que o Brasil galga novas posições na lista. Entre 1992 e 2013, a taxa de encarceramento (número de presos por cada grupo de 100 mil habitantes) do País cresceu aproximadamente 317,9%, passando de 74 para 300,96. Nos Estados Unidos, o aumento foi de quase 41%. Na China, de 11%. A Rússia foi o único país  do grupo a registrar redução de cerca de 4%.

“A elevação na taxa de encaramento acontece porque não se está aplicando com efetividade a Lei de Medidas Cautelares , que prevê formas alternativas à prisão (hoje previstas somente para penas de até 4 anos). Outro agravante é que ainda não aprovamos a a lei que cria as audiências de custódia, estipulando o prazo de 24 horas para que o preso em flagrante seja apresentado ao juíz, junto com seu defensor, para avaliar a necessidade de sua prisão”, explica Marcos Fuchs. “Uma forma de amenizar esse cenário seria aplicar com mais frequência a chamada Justiça Restaurativa, no qual a pessoa que cometeu determinado crime é acompanhada pela Justiça até o local do delito para se desculpar e realizar um trabalho comunitário.”

Acesso à Justiça

A política de encarceramento em massa proporcionou, nos últimos 20 anos, um aumento de 379% no número de presos no Brasil (a população do País cresceu  30% no mesmo período). Essa política não foi acompanhada pelo descongestionamento do acesso à defesa e à Justiça. No País, 43,8% das prisões são provisórias. No último balanço, de dezembro de 2012, somavam 41,8%.

“Isso ocorre porque o juiz sabe prender, mas não há advogados em número suficiente nas varas de execução penal para apreciar esta quantidade de casos”, explica Marcos Fuchs. “Isso pode ser facilmente observado principalmente nas regiões norte e nordeste.” Em alguns estados, como é o caso do Amazonas, do Maranhão, do Piauí, da Bahia, Minas Gerais e de Pernambuco, a taxa de detentos sem condenação definitiva supera 60%. Importante destacar que a Conectas, ao contrário do Ministério da Justiça, considera presos em delegacias como provisórios. Segundo o novo balanço, a polícia civil tem sob sua custódia mais de 36 mil pessoas.

Outro retrato da falta de acesso à Justiça pode ser visto no desequilíbrio estrutural e financeiro entre os três órgãos que compõem o sistema de Justiça – Ministério Público, Judiciário e Defensoria Pública. Segundo levantamento de 2013 da Anadep (Associação Nacional de Defensores Públicos) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Brasil conta hoje com 11,8 mil juízes, 9,9 mil promotores e apenas 5 mil defensores. Só no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, cada defensor é responsável por 2,5 mil processos criminais.

Encarceramento em massa

Ao contrário do que estabelecem as leis nacionais e as normas internacionais, o Brasil utiliza a privação de liberdade como regra, e não exceção. Em setembro de 2014, o uso abusivo do encarceramento no País foi alvo de críticas pelo Grupo de Trabalho sobre prisão arbitrária da ONU. “Políticas públicas ‘duras contra o crime’ criam uma tendência severa de encarceramento em massa, enquanto a maioria dos estados não têm capacidade ou estrutura para lidar com suas consequências”, afirmaram os especialistas.

O Brasil possui desde 2011 uma Lei de Medidas Cautelares (12.403/11), que prevê medidas alternativas para pessoas que respondem a processos criminais, evitando seu ingresso na prisão, mas a norma não vem sendo aplicada de maneira adequada. “Esperava-se que o número de presos provisórios caísse depois da aprovação da medida, mas os números do MJ mostram justamente o contrário. O Judiciário precisa entender a dimensão de sua responsabilidade nessa questão”, diz Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas. Os dados mostram que o número total de presos provisórios aumentou 107% entre 2005 e 2013.

Outro dado que chama atenção é o tipo de crime que coloca o maior número de pessoas atrás das grades. Desde de 2005, ano que antecedeu a aprovação da nova Lei de Drogas  (11.343/2006), a quantidade de detentos cumprindo pena por tráfico cresceu 344,8%. Hoje, 45,6% das mulheres e 24% dos homens encarcerados respondem por crimes relacionados às drogas. Em 2005, esses índices eram, respectivamente, de 24,7% e 10,3%.

Ao contrário do que possa parecer, esse aumento não demonstra a eficiência da lei, mas, ao contrário, o aprofundamento da penalização de jovens negros e pobres das periferias. Segundo Vivian Calderoni, advogada do programa de Justiça da Conectas, “grande parte do contingente que passou a ocupar os presídios depois de 2006, por conta da nova norma, não tinha antecedentes e foi detido com pequenas quantidades de droga”. “Salta aos olhos o impacto da Lei de Drogas na população carcerária feminina. Em geral, são mães, chefes de família, que vivanciam situação de grande vulnerabilildade social. O aprisionamento dilacera esse núcleo familiar”, completa.

Outro crime bastante comum entre a população carcerária brasileira é o furto, que ocorre sem violência. Cerca de 14,1% dos homens detidos respondem por isso. “Mais de 42% dos presos cumprem pena por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça. Esse enorme continge poderia sofrer outros tipos de sanção que não o cárcere, desafogando as prisões e facilitando o trabalho do Estado con os demais detentos”, explica Custódio.

Perfil do preso

As políticas de encarceramento que inflam tão rapidamente todos esses números atingem uma parcela da população com perfil bem específico: mais de 60% dos detentos são pretos ou pardos, 74% têm menos de 35 anos e 70% não superaram o Ensino Fundamental. O padrão se repete entre os homens e as mulheres.

“O retrato pintado pelos números do Ministério da Justiça é claro ao determinar que é o alvo preferencial da política penitenciária: o jovem, negro e pobre. O sistema penal é seletivo e funciona como instrumento eficiente de criminalização da pobreza no Brasil”, afirma Custódio.

Estrutura

As políticas de encarceramento combinadas com a não aplicação de medidas alternativas e com a falta de acesso à Justiça criaram uma bomba demográfica: o sistema não comporta tanta gente. O déficit chega a 256 mil vagas. Em sete estados (Alagoas, Amazonas, Amapá, Maranhão, Pernambuco, Acre e Sergipe), ele supera que o número de vagas ofertadas.

“A superlotação derivada do déficit de vagas e do encarceramento em massa colapsa os serviços públicos dentro das unidades e facilita o aliciamento dos internos pelas facções criminosas que comandam os presídios”, diz Marcos Fuchs. “É importante frisar que a solução não está na construção de mais vagas. O Estado deve assumir uma importante postura e passar a usar o principio dos numerus clausus, no qual uma pessoa que cometeu o delito só é encaminhado à prisão quando um outro preso for solto”, completa. O Paraná, que aplica o princípio, foi um dos únicos a reduzir a população carcerária no último balanço do Ministério da Justiça.

No País, desde 2005, a diferença entre o número de detentos e a oferta de vagas no sistema prisional cresceu 131,6%. A superlotação agrava os problemas de infraestrutura dos complexos e coloca ainda mais entraves para que a pena transcorra dentro de parâmetros mínimos para o tratamento adequado dos presos. Isso se verifica, por exemplo, no acesso à serviços de saúde, educação e trabalho. Segundo o Ministério da Justiça, em junho de 2013 havia apenas um clínico geral para cada 1,4 mil presos e apenas 21 ginecologistas para as 36 mil mulheres encarceradas no Brasil.

Segundo a CPI do Sistema Carcerário, feita em 2009, “a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo encima do vaso sanitário”.

A mesma fotografia desoladora é encontrada no acesso à educação e ao trabalho, duas das principais ferramentas contra a reincidência (hoje ao redor de 60%, segundo a Unicef). Em São Paulo, Estado que abriga 35% dos presos do País, apenas 5,7% frequentam as aulas. A falta de oferta contrasta com a demanda potencial: 56% dos internos não completaram sequer o ensino fundamental. No Brasil, o índice de engajamento da massa carcerária em atividades educacionais é de apenas 10,2%.  O quadro no acesso ao trabalho é similar. Hoje, apenas 20,8% dos detentos brasileiros realizam algum tipo de trabalho interno ou externo.

“Além de serem direitos constitucionais e estarem previstos na Lei de Execução Penal (7.210/1984), trabalho e educação são importantes ferramentas de remissão da pena. Isso significa que a cada 3 dias de atividades laborais ou educacionais, um dia da pena é descontado, contribuíndo com um melhor funcionamento do sistema”, diz Custódio.

Outro desequilíbrio grave é verificado na quantidade de agentes carcerários disponíveis para realizar a segurança do sistema. O número de funcionários de carreira é sete vezes menor que o de internos.

Alternativas penais

Contribui para o cenário a falta de investimento dos governos em alternativas penais – medidas aplicadas a presos já condenados que permitem o cumprimento da pena fora da prisão. Segundo dados de 2011 do Ministério da Justiça, só 5% (R$ 4,8 milhões) dos recursos do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional) foram destinados ao apoio a penas e medidas alternativas. “Ao disponibilizar mais recursos para a construção de presídios e muito menos para as medidas alternativas, o governo estimula a lógica do aprisionamento nos estados em detrimento de perspectivas que rompam com a cultura do cárcere. É um recado muito claro de que não há verdadeiro interesse em contruir alternativas”, defende Vivian Calderoni.

 

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